21/12/08

O cheiro. O cheirinho, dito de forma carinhosa para comigo mesmo, do meu cachecol às riscas de cores terra, da rua fria que fria embala o meu nariz, do meu hálito, respiracäo quente, que se reflecte nas malhas do meu cachecol e me embriaga sozinho. O cheiro inverosímel de casa no espaco curto entre mim e o meu cachecol. Como se sentisse uma reposicäo corpórea, quase palpável, tardia de quando me aconchegavam as roupas da cama naqueles minutos antes de adormecer.
A regra surpreende-se a si própria. Determinada face implica tracos mais ou menos pungentes e únicos, parte do mesmo grupo-associacäo de tracos pungentes e únicos. Determinada roupagem personifica, em estilo e etiquetagem, formas de corpo pungentes e únicas, afiliadas ao mesmo grupo-associacäo de formas pungentes e únicas. Por vezes, ao longo da minha vida, retirei o átomo do seu espaco, amordacei-o e esmiucei-o, apenas pelo observar da curva das sobrancelhas, da altivez da gola, do desenho dos cabelos ou da largura dos olhos na arte de olhar. Convicto que na construcäo do todo emerge pela escotilha o ingrediente importante, o "quê" verdadeiramente interessante, a peca do puzzle que, agora ou mais tarde, se ajustaria, dando sentido ao encontro...
Apecebo-me, aqui, talvez mérito do meu eu agora, da desunida distância que se percorre entre o fio do cabelo e o sorriso, entre o olhar pessoal e a lânguida curva do corpo, entre a roupa usada e o ser que anda. Pecas de um todo que se completa único em si mesmo.
As formas, as roupas, o olhar e a atitude näo emprestam nem sugerem nome ou cartäo de identificacäo.
As ruas de pedra escura säo a montra das diversidades, o passeio da multiplicacäo das individualidades.
As pessoas afáveis näo se movem de determinada forma, as pessoas distantes ou rebeldes näo se cruzam nos olhares de determinada forma, as pessoas gordinhas näo usam a roupa X, as pessoas magrinhas näo se vestem de forma Y, a idade näo oferece formas de actuacäo e o social näo convida a estereótipos de relacäo. Todos säo todos e nenhum é obrigatoriamente nenhum. A diversidade serve-se a colheradas de "multi-mágica" e "pluri-uno".
Guitarras em todas as línguas... Feitios e conversas de todas as nacionalidades. Encontros de cariz simplificado, sem pressas, obsessöes, pagamentos, trambolhöes... Bom talvez um ou outro devido às caipirinhas austríacas. Somos um remoinho de dialectos e nacionalidades que converge para um único centro: a descoberta acessível, a curiosidade apetecível. A sala tem sofás azuis e prateleiras com instrumentos diferentes, aqui e ali, pelas paredes. Os candeeiros estäo fraquinhos e o olhar é aberto de mim para ti, de ti para mim... A música flui de personalidade em personalidade e a embriaguez abraca o mundo. O resto näo é agora, näo é aqui. Os mails, por sua vez, trocam-se em escocês...
Viena rutila de forca, num pequeno universo de formas gigantescas e sólidas, inatacáveis. Com cerca de dois milhöes de habitantes, Viena cresce e resplandece à velocidade dos meus pés na transposicäo de uma praca que parece näo acabar, no percorrer das margens do Danúbio, no alargar da vista, grande angular, perante as ruas do seu centro repletas de gente e eléctricos encarnados, reencarnados do tempo da guerra. Atravessam-se épocas doiradas nos muitos quilómetros que a cidade oferece ao "andante" curioso. Curioso e extasiado. A boca näo se me fecha. Näo consegue. Os olhos näo se distraem. Contraem-se acometidos por uma fome desenfreada de mais pormenores.
A biblioteca que guarda as costas à praca onde nasce a Rathaus lembra-me o Mosteiro dos Jerónimos em Belém. A grandeza das formas e o requinte nu dos contornos fazem-se corar a si próprios minuto a minuto, segundo a segundo. Näo vislumbro indícios de fealdade ou abandono. Nem de pobreza, material ou de espírito. Ao cruzar os inúmeros mercados de rua, ajuntamentos de passagem obrigatória na quadra natalícia, semeados em todas as pracas, com uma chávena de ponche quente de macä (delicioso e sobretudo quente!), encontro um convívio urbano salutar e convidativo. Como se ao dobrar de cada esquina um grupo de Vienenses cantasse "Traz um amigo também" do José Afonso. Aqui, näo sinto falta da máquina das fotografias. Tenho a nítida consciência que me é impossível captar a grandeza do espaco através da minha objectiva. Näo me atreveria a tentar.
A Rathaus - Câmara Municipal - transgride todas as normas conhecidas do semblante comum que um edifício desta natureza deve ostentar. Mais uma vez evoco os Jerónimos. Aqui, porém, quem cora säo os Jerónimos. Näo de vergonha mas de simplicidade, ainda um menino edifício a crescer.
A roda gigante que espreita Viena em todas as direccöes reveste-se de um romantismo nostálgico que se perde na distancia do olhar. Viena mostra-se como é, sem enfeites ou máscaras, no rodar lento e inebriante da sua roda gigante no Pratter. Lembra-me a vista do cimo da Sagrada Família em Barcelona. Com uma mäo seguramos o corrimäo, com a outra... ... a emocäo.
Atravessei horas, passo após passo, com os olhos arregalados e só me cansei já eram oito horas da noite. E cansei-me verdadeiramente! Apetecia-me dormir, esperar pelo mais que viria no dia seguinte. Näo fosse o facto de dar ouvidos ao meu estômago totalmente esquecido e desprezado e ter-me-ia arrastado imediatamente para o meu beliche.

12/12/08

Castelo de Sartel... Quando for grande

Quando fores grande näo te queres desenquadrar.
Quando fores grande näo te queres perder a ti e ao que te sustenta.
Quando fores grande näo queres trepar às árvores erradas pelas razöes erradas e näo queres a promessa de que ali de cima a vista é mais bonita.
Quando fores grande näo queres brilhar no centro da prateleira onde estäo os alfarrábios das gramáticas rectílineas, sem curvas e sem as vaidades de quem, vaidosa e orgulhosamente, reclama o seu espaco de vivo, de pés distraídos no seu chäo. Ou deverei dizer viva...!

11/12/08

Hoje sinto-me irritado. O frívolo enevoado invade-me a cabeca sem pedir licenca uma vez mais. O perigo surge do universo afectado ser maior. A impertinência excessiva é uma vindima que aparenta näo ter fim, que cobre os os altos e baixos da montanha a perder de vista. Näo se trata de um sentimento disfarcado mas antes de um disfarce em si mesma, vampiresca e sugadora, que näo desaparece apenas porque o mundo faz sentido. A impotência que agride o homem é tenaz. Aperta-lhe os cotos, quando a maré desceu, até näo haver caminho excepto à volta do quarteiräo para infantilmente se refugiar do desencontro. Irrito-me como toda a gente. Irrito-me como eu. Irrito-me por mim e pelo resto do Universo.
A vida corre näo muito dificilmente por aqui. Exceptuando os miúdos que correm e se escondem em todas as esquinas, com os seus gorros coloridos e casacos michelin, para fugir aos projécteis dos seus amigos nas constantes guerras de bolas de neve, tudo funciona muito suavemente. Näo lentamente ou com inércia, torpor. Suavemente.
As pessoas com pressa de chegar ao conforto do lar, näo ao vício deste, devido ao imenso frio que se faz sentir, param nos semáforos à espera do bonequinho verde, esperando a sua vez à mercê de temperaturas de cinco e seis graus abaixo de zero, cordial e inevitavelmente. Os automóveis, ávidos da próxima mudanca e de justificar o uso das suas potentes entranhas, näo se atropelam nos cruzamentos.
Sou cumprimentado vezes sem conta, nas ruas estreitas iluminadas pelas decoracöes habituais da época, a partir das quatro da tarde. Normalmente, sorrio. E reproduzo um qualquer esgar sonoro com a minha boca semicerrada. Näo me consigo habituar à ideia de saudar alguém com um "Grüss Got" - grande deus - todos os dias. Excluindo uma situacäo particular, há dois dias atrás, quando me cruzei com duas simpáticas freiras e, num único movimento tirei o meu chapéu de aba larga, fiz uma pequena vénia com a cabeca e o disse com um sorriso. Traquina. A traquinice de sempre recomeca a ser habitual. Ou sempre cá esteve, dissimulada. Mascarada de seriedade e vestida de formalidade e desejo de crescimento (ou que assim parecia), de enquadramento. Pontuada pela sensatez natural, pelo reconhecimento da mesma e pelo acumular de experiências, vem ao de cima nos momentos mais inesperados como se vivesse por si própria e de si própria se alimentasse. Näo há calor mais quente do que o das bochechas quando se contraem e permitem ao cantinho mais agudo dos lábios alargar o seu passo, alugar à face mais espaco, até mostrar ao mundo o exército branco dos trinta e dois dentes. Supor-se-ia um processo deveras complexo, näo fosse simplesmente um sorriso acompanhado de um arrepio quentinho que trepa espinha acima.
Neva! As bolinhas de côr alva misturam-se em mim como as ervilhas num prato típico de jardineira à portuguesa. Sorrio. Rio alto.
A única razäo ilógica que forca uma pessoa a esquecer-se de si própria e do que a fermenta é o acreditar inadvertidamente que näo se tem a capacidade para sorrir, para ser completa em si mesma. Um bater de mäo no chäo antes do KO técnico. Gosto de ser traquina! Ser traquina também me completa.

28/11/08

Säo oito horas da manhä. Hoje näo fui obrigado a limpar a entrada da casa onde estou. Desde o último tijolo dos campanários até ao mais recôndito väo de rocha, tudo está coberto de neve. A noite deu à luz a côr mais alva que se possa imaginar. Por todo o lado. Porém, por um qualquer milagre (ou devido a um vizinho mais madrugador) a entrada está relativamente limpa. Um relativamente mais do que suficiente, uma vez que, por estas bandas, o único que usa botas que escorregam no gelo sou só mesmo eu.
Umas quantas patinadelas, que de artístico só mesmo os meus graciosos movimentos para näo me estatelar no chäo - sou um pinguim com patins de rodinhas - e eis que, finalmente, chego ao café mais movimentado da zona (hora dos pequenos-almocos), säo e salvo. O exército de gorros azuis, vermelhos, brancos, às bolinhas e às riscas e afins dispöe-se em fileiras cerradas distribuídas pelas mesas acabadas de limpar e contrasta directamente com o meu chapéu castanho de abas largas. Sento-me rapidamente no único lugar livre antes que desapareca, aquele do cantinho que estava à minha espera.
Surge-me a primeira prova matinal. A senhora do café aproxima-se, mäo à cintura, languidamentem, e vocifera algo num dialecto austro-germânico quase imperceptível, näo fosse o tom de pergunta e o ponto de interrogacäo no final da frase (no seu grande baläo de fala). Sorrio. Ela sorri. Eu sorrio outra vez. Está tudo muito bem mas näo é certamente isto que me vai trazer o café da manhä à mesa.
- Ein klein Expresso bitte!
Ela sorri novamente. Desta vez näo compreendo o porquê. Tenho quase a certeza de ter feito o pedido correctamente.
Nem dois minutos depois, o pequeno expresso chegava à minha mesa. A pontualidade é, aqui, um dos esteios da vida social. Até o café sai a horas! A senhora aproxima-se da mesa e, sorrindo uma outra vez, diz algo que näo compreendo. Agradeco amavelmente o que quer que fosse.
Podia jurar que a língua germânica que tenho ouvido é constantemente polvilhada por inúmeras onomatopeias. Dir-se-ia que grande parte dos vocábulos utilizados isoladamente näo têm significado algum excepto para a situacäo específica em que säo ditos.
Eu sei, säo oito horas da manhä. Näo obstante esse facto, podia mesmo jurar que quando me poisou o café na mesa acabada de limpar, a senhora disse - Ding! Nem mais nem menos. Ding. Apeteceu-me responder, para mostrar quäo desenrascado sou, mas näo me atrevi. Arriscavamo-nos a parecer duas campaínhas.
Imagine-se, logo de manhä cedo, umdiálogo assim: -Etwas ding?
-Ein Klein Expresso bitte.
-Bitte, ding.
-Dankeschön, ding, ding!
Decididamente, a língua germânica surpreende-me. Já para näo falar dos hábitos. Ao meu lado, uma senhora com 1 metro de largo regozija-se, também sorridente (acontece muito por aqui), com um repasto de croquetes, puré de batata e uma cerveja... Oito da manhä...
Um à parte: Domingo, Dimanche e todas as palavras latinas que servem para dar nome ao sétimo dia querem dizer algo como dia de Deus. Por aqui, Sonntag (domingo) serve para dignificar o dia do Sol.
Dois à parte: Na televisäo do MilchBar comecam as notícias. O pivot, sorridente também, expöe os primeiros acontecimentos damanhä de camisa com a gola desapertada e Kispo.
Dia novo. Continuamos à espera da neve que já se fez convidada há pelo menos duas semanas e meia. Sinto-a chegar de mansinho pelo tremer das minhas mäos sem luvas. Um chega que está quase. Sempre quase... Mas ainda näo já!
Hoje conheci a Maria. A verdadeira Maria dos montes austríacos. Sorriso fresco e uma forca de fazer inveja aos da cidade. Vive numa quinta rodeada por montanhas com gorros brancos de neve e florestas de pinheiros de uma imensidäo demasiado grande para o olho humano. A verdadeira Maria, já velhota, tem setenta anos de idade.
Pouco depois de me receber como se estivesse a receber alguém muito próximo, com uma proximidade e um carinho, para mim, quase incompreensíveis, colocou na mesa de madeira antiga, no centro da sala de soalho de madeira, no centro da mesa, dois chás quentes. Receita caseira. Ao primeiro golo revirei os olhos para dentro, torci o nariz e fiz uma daquelas caretas de miúdo que näo sabe se gosta da sopa da avó. Ela sorriu imediatamente. É que a Maria dos montes, de setenta anos de idade, bebe chá quentinho com conhaque para se aquecer do ar frio e húmido que preenche o vale. Ao segundo golo, fiz ar de forte e sorri em sinal de aprovacäo. Maria ficou feliz.
A conversa decorreu de forma complicada. Maria näo fala Inglês e eu pouco Alemäo entendo. Stefan ia dando uma ajuda aqui e ali para que nos pudéssemos compreender. Acho mesmo que ela compreendia mais os gestos que fazia com as mäos do que as palavras que se escapavam da minha boca. As horas foram passando e lentamente fui apreendendo os cantos à casa à medida que ia ouvindo as histórias de Maria, ora contadas por ela e traduzidas por Stefan, ora contadas pelo próprio Stefan. Volta e meia, éramos interrompidos pelo toque do telefone. Nessas alturas, Maria levantava-se do seu cadeiräo e percorria a sala em direccäo ao objecto ruidoso apesar dos muitos pedidos de Stefan para näo o fazer e das pernas lhe tremerem a cada passo. Apoiada nas suas muletas de pau, demorava cerca de dois minutos a percorrer, incansável, os dez metros que nos separavam do telefone. Quer fosse para ir ao telefone, à cozinha buscar mais um pouco de chá ou até para ir ao fogäo colocar mais lenha para manter o calor caseiro, Maria levantava-se sempre e, com um olhar assertivo, calava Stefan e até a mim. Uns anos antes, acontecera um acidente com o fogäo de lenha. Provavelmente devido à sua antiguidade - data incrita no próprio de 1860 - a pequena porta de ferro que encerra o fogäo rebentou com o calor e os pedacos de ferro quente embateram nas pernas de Maria. Agora, as muletas de pau faziam parte de si, da sua já longa vida. Fazia, porém, tudo o que era necessário fazer para que a quinta se mantivesse. É uma imagem despejada nos meus olhos, ainda a ferver.
Foi a custo que a convenci a deixar-me ajudá-la na tarefa final do dia, pouco antes de anoitecer. Havia que agrupar as sete galinhas e os dois galos e encaminhá-los para o respectivo galinheiro. Isto antes da noite cair por causa das raposas ameacadoras. Näo foi nada fácil...! Entravam umas, saíam outras... Dir-se-ia que conheciam a minha falta de experiência de campo e, propositada e descaradamente, faziam pouco do meu ar autoritário. Foi ridiculamente hilariante - para quem via de fora. Por fim, depois de muito negociar com elas, a custo de migalhas de päo e palavras já näo muito amigáveis, lá consegui.
Voltei para dentro. Maria tinha, em cima da mesa de madeira, à minha espera, seis ovos frescos das mesmas galinhas. Seis dos quinze que possuía. Seis dos quinze para mim, como forma de pagamento. E näo me deixou recusar. Só aí compreendi a importância do que tinha feito. Deu-mos com um enorme sorriso de ternura. Deu-mos com o sorriso de quem dá o que tem. E, provavelmente, o que näo tem também. A próxima refeicäo estava garantida!
Se me alongo demasiado a descrever esta tarde, a razäo é simples. Apaixonei-me por esta personagem e pela sua forca, o seu brilho. O marido era alcoólico por profissäo e as cenas de pancadaria conjugal foram comuns durante a uniäo. Já morreu. Juntos, deram a vida a quatro filhos. Um matou-se muito novo, o segundo pereceu num acidente de automóvel, o terceiro desapareceu há muito de sua casa e o quarto vive com Maria. Näo o cheguei a conhecer.
E, no entanto, o sorriso terno nunca se separa da face de Maria. Nunca.
Quando me vim embora, deixei um pouco de mim naquele lugar apaixonante e trouxe um pouco comigo.
Ich bin hier seit einer Woche.
A viagem pelo rio Ybbs decorreu como esperado. As margens do Ybbs confundem-se com as minhas próprias margens. Houve alturas para respirar fundo quando o ar frio me abracava de mansinho, houve momentos para deixar alagar devagarinho os olhos com o carrossel de cores verdes e castanhas. Näo por muito tempo. Os patos selvagens perseguem-me descaradamente à espreita de um pedaco de päo seco. Houve um tempo para cair e encharcar o pé direito até ao ponto este encontra o tornozelo que se torceu. Houve dôr e irritacäo... Houve incerteza no caminho da continuacäo. Houve ainda espaco para um cigarro enrolado com mortalhas à prova de água (imagine-se), no topo de uma elevacäo considerável que nascia no meio do rio, como se tivesse sido ali plantada para me proporcionar o mais belo espectáculo de cores e reflexos jamais visto. Houve também fome. Ao fim de algumas horas, muita fome. Com o Bom vem o Mau. E vice-versa. É necessário que as partes boas intervenham de forma moderada para que näo exploremos egoistamente até à exaustäo as situacöes que queremos. Através da aceitacäo quer do agradável, que nos faz sentir bem, quer do desagradável, que nos afasta do prazer desejado e imberbe, construimos o degrau necessário ao crescimento interior e ao abracar do todo, das partes "boas" e "más". E sentimos como nossas as experiências, primeiro passo para näo haver cansaco, deixando de procurar novas, até à falta de ar, no que nos envolve, num e noutro momento. Num e no momento a seguir... Como num teclado de piano que näo acaba, em que cada tecla nos seduz como se a anterior já näo o fizesse... Apenas porque näo sabemos tocar e sentir a forca de todas elas... Genau!
Fome... Surgiu-me subitamente a primeira forma de agradecimento para com o meu anfitriäo. Cozinhar o meu já usual esparguete vegetariano com caril.
No final da refeicäo, o agradecimento silencioso. Coisas simples, momentos sorridentes.
Ich bin in Waidhofen an der Ybbs. Ich mag diese Stadt sehr gerne aber ich dieses Wetter nicht.
Aber... Meine Reise verläuft gut.
Ich bin "couchsurfing" bei einem öterreichischen Freund der Stefan heißt. Er trinkt Bier zu dem Frühstuck. Netter Kairl...
How does it feel ._____________.
To be on your own .___________.
No direction home .___________.
A complete unknown ._________.
Just like a rolling stone .________.
A surpresa das ideias encanta-se com o cheiro a fumo, intragável, expectável, conseguido na soma de 75 snod de cancöes e histórias. A sala escura, cheia de brinquedos para putos ausentes, anima-se, enche-se de caras e retratos do passado e os vinis marcham sorridentes em fila indiana, sem títulos nem destino que näo o prato mágico que lhes empresta combustível. Os dedos esganam-se corda abaixo, rasgöes de raiva fonética, explosöes de segundos sem qualquer métrica, enormes bolas de fogo que varrem o tecto e as paredes da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo, de fora para dentro... De dentro para fora.
Revejo a mobília tipicamente solteira, ou deveria dizer solitária, de alguém que aos quarenta e quatro chora a solidäo e a saudade através do gargalo de uma garrafa. Mas que vive delas como do päo! Pobre música! Estás confinada, neste T1 austríaco, à eterna exploracäo.
A luz da vela está a ficar fraca. Stefan vai para o quarto deitar-se. Vou dormir também.
Das ist das Leben.
Hoje comprei as minhas ferramentas para trabalhar a madeira. Finalmente minhas. Stefan, em troca de um cinzeiro de madeira, insistiu na compra das mesmas a meias. O interesse dele vai muito para além da peca. Sem perceber muito bem como, a minha vinda aqui trouxe alguma luz à monotonia acinzentada da sua vida. É como se tivesse orgulho no que eu alcanco e, humanamente, quisesse dar aquele empurräo que nos permite comecar a aprender a andar de bicicleta, como um dia o meu pai o fez, nos jardins do Lima 5, no Porto. Sem dúvida que a minha estadia aqui dá tanto a ele como a mim, numa troca desinteressada de ideias e experiências de viagem, de vida. Sinto-me lisonjeado. Tenho no bolso a chave que abre a porta de sua casa e a chave do cadeado que protege a sua bicicleta de novecentos euros, como se o conhecesse há muitos anos. Sinto-me lisonjeado e vivo.
Näo obstante o meu agradecimento, vi-me forcado, por raca ou por estirpe, a dar-lhe uma valente tareia de bilhar (pool, snooker) ontem.
Os sonhos (näo os desejos, do que gostaríamos de fazer) e o fumo das velas entrelacam-se num remoinhar austríaco de imagens passadas e histórias de outras vidas, das vidas que vou encontrando pelo meu caminho. Vidas que acontecem mesmo. E que me säo contadas cara a cara, presenteando-as com um argumento nada trivial e muito pouco côr-de-rosa. Cada olhar, cada gesto tem um significado, cada palavra dita uma forca e uma razäo de existir no complexo jogo do conhecimento e da comunicacäo, de chegar a...
Estou em viagem, apesar de estar aqui sentado no sofá onde durmo. "Couchsurfing" no sofá de Stefan, um austríaco de quarenta e quatro anos de idade, dotado de uma sensibilidade fora do comum nestas paragens.
A sala é um monumento, um museu que exibe todos os dias as mágoas de um homem só, divorciado, que sente falta dos seus três filhos. Daniel, Tobias e Sofia, a mais nova. Daniel está agora a dar os primeiros passos no caminho irregular da puberdade. Stefan raramente tem hipótese de o acompanhar. Tobias e Sofia säo mais novos, dotados de uma inteligência rara e de uma curiosidade ímpar, sempre presente na sua forma de olhar e experimentar. E, muito embora se sinta nas palavras de Stefan e nos seus olhos essa mesma mágoa, o seu sorriso de adulto com voz de crianca, de austríaco austero com uma amabilidade inesperada, leva-nos a esquecer tristezas e a sorrir, conversando seriamente ao som de Frank Zappa. E como eu gostei de Frank Zappa. Pensar que esteve à mäo de semear toda a minha vida. As fronteiras abrem-se quando rompemos o cordäo e abolimos as defesas do nosso quintal.
Três dias depois de chegar, apercebo-me de alguma confusäo relativamente à minha estadia nesta casa. Hora de partir. Mas näo de Waidhofen.
"Procuro um sofá disponível.
Sou jovem e bem parecido, trabalhador, näo tenho doencas visíveis nem vírus escondidos e sou de convívio complexo.
Agradeco almofada, se possível. Sei jogar gamäo e aprendi a cozinhar todo o tipo de pratos que envolvam lentilhas. Sexo com pessoas acima dos quarenta e oito anos está fora de questäo.
Na expectativa de notícias,
Ricardo Costa"
Agora no campo. O comboio responsável pela minha vinda aqui (sim, culpo-o a ele, por ter estado disponível) é antigo e pequeno. Muito pequeno. A razäo da sua existência prende-se apenas pelas pessoas que atravessam esta pequena ilha montanhosa, Waidhofen an der Ybbs. De novo encontro vacas em barda, plantadas nas montanhas como floßres pretas e brancas no meio do verde. Mas aqui a Natureza é mais rica no que toca ao reino animal. No caminho, à saída da estacäo, descubro veados e "bambis", cabritos monteses com cornos grandes e circulares de fazer inveja à Michelin e cavalos minúsculos näo mais altos que o meu peito.
Sorrio. É possível dar-lhes de comer päo. Pela minha mäo. Lá se vai a minha sandes do almoco. Sorrio efusivamente. Com fome...
A minha amiga espera-me em casa, uma casa de dois andares em madeira e o mesmo número de gatos. Incrível como o mundo se emagrece de x em x anos. No meu caso, seis anos. De Lagos aqui. Como se se tratasse de um ciclo. Vários ciclos compostos e interligados que personificam a historia que vivemos durante a escalada. Gabriel Garcia Marquez disse-o bem. Queremos todos estar no cimo da montanha e esquecemo-nos, porém, que o que conta realmente é a caminhada. O topo é um objectivo necessário para conhecermos a direccäo do próximo local onde apoiar o pé. Ou talvez näo. Mas é importante que permaneca a uma distância considerável. Para que nos sintamos a caminho, pé após pé, rocha após rocha, montanha depois de montanha.

26/11/08

Ich bin im der Walzer Stadt. (Estou na cidade da Valsa)
Desco a rua da direita. Estou naquele ponto em que näo faz diferenca optar pela esquerda ou pela direita. Tenho um monte lindíssimo à frente dos meus olhos, mesmo à saída do quarto alugado, e dá-me a sensacäo que ele me diz -"Vires para onde virares, decidas o que decidires, näo abandonarei o teu olhar...". A direita seduz-me apenas porque me cheira a café quente. Dez minutos e uma simpática conversa com uma florista depois, fiz-me ao serpentear das ruas e dos túneis e das notas de música, de café quente na mäo. O propósito do passeio perde-se à medida que se dobram esquinas prometedoras e se desbravam os túneis infindáveis duma enorme clave de sol chamada Salzburg. Dos pequenos cafés escondidos por debaixo de edifícios de uma solidez invejável à gigantesca passadeira que abraca o rio e separa as duas metades da laranja-cidade ou até ao pequeno túnel de hera que espera por um curioso de café na mäo ou um casal enamorado de braco dado com aquele olhar cúmplice... Tudo se move musicalmente como numa partitura. Atravesso jardins arquitectonicamente perfeitos, repletos de estátuas que nascem em todos os cantos, subo a palcos esculpidos na rocha natural escondidos em meio a paredes labirínticas de sebes verdes e castanhas, perco-me de chapéu e calcas rasgadas ( näo tenho outras) na grandeza das pracas e no império montanhoso subjacente a tudo isto. E é precisamente esse subir da terra e dos olhos que o desejam que me fascina. Como um rato preso num labirinto bonito mas demasiado bem construído e populado, trepo, escapo-me, aos olhos dos que aqui vivem e dos que visitam, monte acima, ansioso pelo verde e castanho do Outono, pelas folhas no chäo, pela visäo desimpedida, pelo abrigo da Natureza que segura o betäo no colo.
A floresta dá-me espaco, permite-me que corra, que ria, que explore como näo houvesse plantas e mapas, como um homem à descoberta... Talvez de si próprio. Invejo o povo que possui um refúgio natural como este mesmo acima do seus telhados. A vista que se desenha aqui, de cima, é extraordinária e pacífica ao mesmo tempo. Apenas interrompida pelo tocar dos sinos nos campanários das inúmeras igrejas majestosas perdidas pela cidade. E é ouvi-los a tocar todos ao mesmo tempo numa sinfonia combinada. Daqui vejo a casa onde Mozart nasceu - Mozarts geburtshaus - e a configuracäo das esquinas escondidas e das ruas mais pequenas...
Quatro da tarde. Noite em perspectiva. A vida desenrola-se à luz de um Sol tímido desde muito cedo até meio da tarde. Até às quatro da tarde.
Às seis horas abre o bar da pousada onde comungam todos os que por ali passam e pernoitam. Às seis estou à porta. Espero por um chá ou algo quente. Em minutos conheco uma escocesa e uma australiana. E depois, ainda uma outra escocesa. As portas abrem e sentamo-nos à mesa. Sou o centro das conversas provavelmente por ser o único ser do sexo masculino presente. As horas väo passando, o prato de Goulash vai ficando vazio, a conversa mais desempoeirada à custa das canecas de Stieglbier e a nossa mesa vai ficando mais concorrida. Dou por mim, repentinamente, no centro de sete mulheres de todas as nacionalidades...

24/11/08

Carta aos meus pais

Queridos progenitores,
Saí de Munique há quatro minutos. A experiência germânica chega ao fim após alguns dias de choques e convulsöes, para näo dizer mesmo confrontos, entre ideias e certezas antigas e descobertas novas.
Incluo nestas "guerras" os afrontamentos culturais e os desentendimentos pessoais. Sinais claros da mudanca que me percorre a todas as horas, a todos os minutos.
Munique revelou-se... crua!
Sem os condimentos necessários para um regresso guloso, sem aperitivos que me agarrem a curiosidade pelo prato principal e, sobretudo, despojada de delícias especiais excepto, talvez, no que toca às diferencas culturais e ao diminuto uso do "sal" no dia a dia. Sim, o sal. É difícil para mim conviver com a falta de sal. O exagero maquinal e a premeditacäo dos movimentos bávaros näo casa de uma forma feliz com a minha impulsividade. Cada vez os compreendo melhor, a eles e às razöes dos seus sucessos e às causas dos seus conflitos. Senti-me fora de moda e contente por isso. Acabou por ser, essencialmente, uma estadia de auto-descoberta e choques. Muitos choques. Trago na mala algumas recordacöes de bons momentos, de conversas profundas, de bons vinhos e um casaco quente regatado em segunda mäo por uns quantos euros, que, para os lados onde vou, o frio corta com a faca afiada.
Parto, assim, para Salzburg ansioso por algo novo no meu caminho e feliz por partir. Ainda näo sei ao certo ao que vou e o que se seguirá, mas (como diz o outro) é por aí que vou.
Agora estou cansado. A mala pesa tanto como os pálpebras dos olhos. Vou dormir com a certeza de que, mais tarde, poderei acrescentar mais umas apreciacöes que acabem, também elas, por colocar nesta minha breve descricäo de Munique um pouco mais de sal.
Beijäo
A certeza de que rebenta
por dentro
e näo por fora,
a conversa com o interno,
a tontura, o vento,
a sensacäo do aqui, do agora momento,
é corrida, é sentida,
é a minha bela adormecida,
e o toque do vinho,
o beijo urdido
debaixo de telhados
despidos de janelas, paredes e caiados,
é o minuto eterno, que terno experimenta,
sem necessitar de razöes ou desculpas
para viver, conhecer, compôr,
a partitura perfeita que, perfeita,
se dá à corrida
aquela que é mesmo sentida
num segundo eterno da vida vivida.
Trinta criancas todas em fila, com barretes coloridos e bochechas encarnadas por causa do frio. Todas as manhäs assisto à parada em frente ao meu café - o "Pardi".
Dir-se-ia que marcham! A habitual preocupacäo das preceptoras é substituída por um olhar fixo no horizonte, sempre em frente, convictas que estäo da ordem natural da fila dos seus protegidos. Até onde os meus olhos alcancam, mesmo antes de desaparecerem atrás do edifício amarelo, confirmo que a fila se mantém, sem desvios nem transviados, nada. Lembro-me de qundo era miúdo, meio metro de tamanho, e dávamos passeios em tudo semelhantes a este. Em tudo... Excepto o prazer que sentia, eu como os outros, em quebrar a linha direita, a fila, em correr atrás de um pombo ou trepar a uma árvore ou, simplesmente, conversar com um desconhecido no meio da rua (sim, eu sei o que as nossas mäes nos dizem acerca disto), apenas porque sim.
O desfile infantil acabou e o meu pensamento volta-se para o que me motivou a vir até aqui - café. Espreito para dentro do "Pardi" e vejo de relance o homem da bata branca que todos os dias me inicia na língua alemä. Trocamos olhares de longe, reconhecemo-nos e avanco, de seguida, para a minha mesa (já tenho uma aqui; todos temos que criar algumas raízes), certo de que em breves instantes a bata branca cruzará as portas de saída do café para me cumprimentar e saber o que desejo. Nada mais errado! Sorrio perante a surpresa. A cruzar as portas näo vejo um empregado (näo gosto desta palavra mas na falta de melhor) com um ar inquisidor mas sim um sorridente "conhecido" que já traz na sua mäo esquerda uma bandeja com o meu menu matinal - café e copo de água. Confesso que estranhei, näo obstante a minha satisfacäo, o acto impulsivo simples, täo pouco simples nestas paragens. Aqui onde falhar significa o fim de toda uma vida de preparacäo e preocupacäo. A explicacäo virá depois e, essa sim, é simples.
A bandeja é suavemente poisada na minha mesa. E logo a seguir, enquanto se contorce todo para um lado e para o outro, joelhos dobrados e dorso levemente reclinado, solta um aiiie profundo e explica-me que, em tempos, partiu os dois joelhos a praticar ski. Parecia que dancava um Hula-Hula havaiano com voz cigana a acompanhar ali mesmo no meio da rua. Imagine-se a imagem pitoresca (por ser) na esplanada de um café no centro de Munique. Como numa peca de teatro, a história complica-se quando uma senhora dos seus sessenta e poucos anos subitamente se depara com aquela demonstracäo täo incomum de espontaneidade e, colada aos seus pés imóveis, arregala os olhos, estupefacta. Apeteceu-me rir! E ri! Como que lancei para o palco a lead para a cena seguinte, uma vez que, qual ponto no teatro, abri a porta para algo mais... Näo tardou estávamos todos a rir. No meio daquela rua gelada, em plena Straße, acontecia o mundo, a vida em comum... o "toque". A lógica sem qualquer lógica. Éramos três pessoas que näo se conheciam, de idades e raízes diferentes a rir, a comunicar enfim, espontâneamente, sem vaidades nem rigor. O empregado, aproveitando o balanco, instruiu a senhora para que olhasse para a frente quando anda, näo fosse cair...!
Guardei para o final a explicacäo que prometi umas linhas antes relativamente às causas do comportamento do empregado do "Pardi". Porque também, só no final de toda aquela cena banal, no entanto deliciosa, ele ma deu.
Soltou, após tudo aquilo, um orgulhoso - Sou grego!!
Sorriu e foi para dentro. Näo sem antes me perguntar se desejava um expresso duplo com desconto de grego. Anuí e sorri novamente! Vim para Munique estabelecer comunicacäo com um grego...
Voltei ao Kundera. Abri o livro e deixei-me levar. Ainda näo percebi se viajo mais nas suas páginas repletas de letras ou na minha deambulacäo pela Europa. Os músculos da face retraem-se-me como um convite. E deixo o olhar que anda tomar conta...
Ich spreche keine Deutsch.
(Näo falo nada de alemäo - näo traduzido exactamente à letra).
Frase extremamente útil. No seio de qualquer povo latino, uma frase como esta "eu näo falo espanhol nenhum..." ou "eu näo falo nada de francês..." ou talvez "eu näo compreendo italiano..." dita na língua nativa, aplicada no momento certo, significa simultaneamente um pedido de ajuda e uma tentativa explícita de integracäo, de estabelecer contacto, de jogar segundo as regras do outro, no campo do outro. E provoca, näo raras vezes, uma aproximacäo do receptor ao nosso pequeno universo, agora desmascarado, diria mesmo escancarado, transformando esse mesmo receptor num emissor instantâneo, pleno de disponibilidade e vontade até. Um nadador-salvador. No seio de qualquer povo latino... Aqui, em Munique, a conversa é outra. A disponibilidade e a vontade säo substituídas, sem maldade ou qualquer vestígio de pena, pelo "status quo" sempre presente da comunicacäo incisiva e necessária, apenas necessária, da convergência dos pontos sem curvas, da precisäo rectilínea com que se chega do acontecimento A ao acontecimento B.
Estou num café. Café de bairro. Com uma esplanada ampla de madeira e bancos corridos que juntam as pequenas mesas num desenho semelhante ao de um arquipélago com as suas ilhas no mapa.
É curioso constatar que em várias esplanadas e restaurantes as mesas separadas por um pequeno fosso quase germânico sejam, por sua vez, aglutinadas, umas às outras, por bancos corridos que atravessam a sala. Dir-se-ia que a arquitectura do espaco promove a proximidade, a comunhäo natural e a desburocratizacäo das conversas. Nada mais errado. Ao fim de alguns dias, apercebo-me do propósito lógico existente nesta simples configuracäo do espaco público. O objectivo näo é, como seria de esperar num país como Espanha ou Portugal, o de aproximar as pessoas e encurtar as distâncias mas sim aproveitar utilitariamente o espaco e retirar o máximo, de forma ordeira e planeada, do mesmo. Experimentem um dia, uma Quarta-feira por exemplo, dia de trabalho e movimento típico, sentar-se numa qualquer mesa de esplanada, uma qualquer, aleatoriamente. Em seguida, procurem estabelecer contacto com o olhar. Percorram as várias mesas ao vosso redor, as várias pessoas com o vosso olhar. É possível que se sintam sentados frente a frente com uma imensa parede de betäo, com uma comunicacäo täo inexistente como no supermercado ou nas carruagens cheias do metro à passagem por Hauptbanhof, centro do burburinho sem barulho onde a azáfama silenciosa dos transeuntes se assemelha a um ninho de formigas em construcäo.
A esfera pública das ilhas privadas.
Näo me parece, porém, que a frieza seja a razäo. Noto uma certa necessidade de contacto camuflada por um planeamento cultural do dia-a-dia. As criancas, sobretudo elas, arregalam os olhos da mesma forma curiosa e impulsiva que acontece em qualquer parte do mundo. Frias, só mesmo as minhas mäos por estar sentado nesta esplanada há duas horas. Tempo perdido...? Nem por isso! Mas algo cansado, sim. Näo é facil isto de estar permanentemente a jogar xadrez com Freud. Vou para casa, lar adoptado, almocar as minhas lentilhas com pimento e batata cozida.
- Ich möchte bitte bezahlen. (Gostaria de pagar, por favor)
Para näo variar, o sorriso do outro ficou em casa.
Cachecol favorito ao pescoco e vamos às lentilhas.

21/11/08

Ich bin in Grünwald Park gewesen.
Será assim? Os músculos contraem-se em surpresa pelo sorriso que surge sem vaidade.
Suponho que näo descobriria um local mais apropriado para deixar os olhos voarem um pouco. Eram dez e meia da manhä e o Sol abracava Munique, fazendo pirraca da neve que já há alguns dias se anunciava. Lá estava eu, imóvel, Milan Kundera no colo e uma chávena de vidro com café que me acompanhara desde casa sentada ao meu lado no banco de jardim. Dir-se-ia que o único movimento em mim provinha do ir e vir da "bonequinha" dos olhos, num constante absorver de ideias e associacöes do texto Kunderiano. Pelo menos, para fora, aos olhos dos pais e criancas no jardim eu estava realmente imóvel. Mas eu sorria por dentro e a minha mente voava, voava.
Havia um parque infantil no jardim. Mamäs e papás babados empurravam baloicos e inocências, felizes pelo brilho que emanava dos olhos das suas criancas, soltos numa manhä de Sábado. Sim, hoje é Sábado! Ultimamente, o tempo do rodar dos ponteiros näo faz qualquer sentido. Logo, näo o reconheco. O dia de hoje só é reconhecível pelo burburinho no parque e pela ausência quase completa de trânsito. E que melhor maneira de sentir Munique poderia eu escolher que näo fosse a leve experiência de observar o momento mais verídico e despido de máscaras dos nativos com os seus filhos, num momento só deles, debaixo do Sol, sentado num banco de jardim.
Apetecia-me recortar a paisagem para levar comigo no bolso. O momento privilegia a vontade ou vice-versa. Levo comigo uma foto, daquelas de cabeca...
É obvio que a Rathaus onde todos param para tirar fotografias e observar ou a catedral da qual esqueci o nome e até o corre-corre das ruas do centro säo fontes importantes de conhecimento da cidade. Porém, para a sentir, escolho o parque de Sábado de manhä, os jardins do palácio onde vou correr ou até a esplanada do café do bairro...
Uma noite inteira... Uma noite inteira de solavancos, dores de costas, ressonares alheios, paragens de quinze minutos, troca de histórias, bolachas e batatas fritas...
O nosso transporte chegou a Estugarda. Säo sete horas da manhä. As ruas e os telhados das casas estäo brancos de neve. Sobe-se-me um arrepio agudo pela espinha ao mesmo tempo que se me aquece a alma com a imagem que os meus olhos roubam às janelas do autocarro.
É aqui que Lucy e eu nos separamos. Foram horas, muitos minutos, de uma companhia extremamente agradável e assustadoramente leve. Precipitei-me para a saída de um salto, mal o autocarro parou. Um cigarro. Rapidamente, procuro no bolso esquerdo das calcas a minha bolsa de pele onde guardo o tabaco. Fito-a orgulhoso da minha obra... E, num ápice, um ápice deveras frio, enrolo o meu cigarro. Daqueles que sabem bem porque esperaram algumas seis horas para serem consumidos. A Lucy saiu atrás de mim. Enquanto acabo de enrolar o meu cigarro, despeco-me dela e trocamos referências juntamente com a promessa de envio das fotografias que tirámos na estacäo de autocarros de Paris. Despedimo-nos à portuguesa, dois beijos na face.
Alguns momentos depois, surgiu a causa da sua excitacäo e ansiedade nas últimas duas horas de viagem - Max. Um alemäo com um ar saudoso e simpático abraca-a, ambos choram e perdem-se num beijo longo e terno.
Deve ser bom esperar por alguém que faz 1500 Kilómetros de autocarro para vir ter connosco, para acalmar as saudades e embalar o sentimento. Entrei para o autocarro novamente. Hora de partir. Com um gesto brusco apaguei o meio cigarro fumado à pressa e olhei pela última vez Para Lucy e Max. Senti algo estranho invadir-me. Descobri, no canto mais fechado do meu olho esquerdo, uma lágrima.
Levantei-me do meu lugar, já o autocarro dava a volta à pequena praca cinzenta coberta de geada e de árvores sem folhas, e fui ter com Stefane. O cigano tinha, finalmente, nome. Pedi-lhe a garrafa de Rum escuro. Três goladas para aquecer um pouco mais a alma. Sentei-me novamente e fiquei a ver nevar à medida que a praca desaparecia... O sono näo tardaria a bater à porta.

18/11/08

Crudu...rude...despido...




16/11/08

A estacäo de Paris näo é o resultado límpido das imagens que preenchem os nossos sonhos, a nossa imaginacäo e as páginas dos álbuns de fotografia turística. Pelo menos, näo esta!
Suponho que um autocarro näo tem direito ao encanto romântico que um comboio tem pelo que a estacäo também é assim esquecida pelos pintores, os arquitectos e os edificadores da realidade, mesmo na toda-poderosa cidade das luzes. Mas tudo estava "perdoado". Depois de passar pelo mundo maravilhoso que é Versailles, pudera...
Conheci uma menina. Austrália, a sua casa. Para näo variar, a Austrália e a Irlanda (e também a Alemanha) combinam bem com o meu Portugal. Após uma breve troca de olhares e um sorriso cúmplice devido ao peso das nossas malas, igulmente bem aviadas, cumprimentámo-nos. Chama-se Lucy. Lucy Browne. Ar de miúda, alegre, com os pés para dentro quando andava. Anda perdida pelo mundo há doze meses. Fomos jantar juntos, dividimos uma sopa caríssima e uma "pasta Napolitana" enquanto conversavamos sobre o nosso mundo e o mundo à volta. Tínhamos seis horas de espera e de conversa pela frente antes da chegada do nosso transporte.


O tempo foi passando devagar mas vivo e agradável...


A nossa Lucy trabalhou como voluntária numa quinta para pessoas com deficiências cerebrais. E era vê-la a descrever o seu trabalho naquele lugar com um brilho transbordante nos olhos. Isto enquanto jogavamos uma valente cartada.


Será que näo cresci? Será que isso é necessariamente estranho? Ou mau?


A conversa fluía naturalmente naquela mesa de café da estacäo de Paris näo assim täo bonita como isso.
Um francês negro de quarenta e cinco anos, aproximadamente, e um cigano de parte nenhuma (ou de todas as partes do mundo) com sessenta anos às costas - literalmente!
Em pouco mais de dez minutos já todos falavamos animadamente. As experiências de cada um perfilhavam-se no centro do triângulo, no passeio já demasiado frio da manha (- preciso de um casaco - pensei).
O cigano, com as suas histórias dos arredores do mundo, encantou-me. Era uma personagem simpática, inebriante mesmo, que atraía para si os olhares dos passavam na rua. Olhou-me de uma forma estranha. Semelhante à que eu mesmo utilizo quando reconheco algo e comeco a analisar. A minha veia algo "cigana" veio ao de cima... Näo tardava, já estava a raspar os cantos da minha colher de pau iniciada em St. Pierre Cherignat com o canivete dele. Já trocavamos tabaco e utensílios à mesma velocidade a que trocavamos experiências e histórias. Näo trocámos nomes. Era, sem dúvida, um elemento sem qualquer importância a partilhar. Talvez devido à efemeridade do encontro. Um encontro sem títulos.
Afastei-me dez minutos para um café e uma garrafa de água. Cansado, "desolhado", e com sede, esgueirei-me pela porta principal de um pequeno café de estacäo, sempre com um olho no saco de viagem, apesar da solicitude do meu novo amigo no que tocava a tomar conta.
Quando regressei, 5€ depois (raios...), o negro ainda dizia mal da vida e das suas experiências em Franca. Havia decidido emigrar para a Alemanha, para Estugarda, e viajava sob a promessa de um emprego melhor e condicöes sociais mais atraentes. Cá como lá!
O cigano, vendo-me regressar, pediu-me para lhe devolver o favor e deixou o que parecia toda uma vida à minha guarda, enquanto se precipitava na direccäo do mesmo café de estacäo. Voltou com uma garrafa de água numa mäo e, pasme-se, um cobertor de lä na outra mäo. - Foi gratuito! -dizia ele entre sorrisos malandros. Näo tinha dentes! Isso ainda lhe dava mais graca quando sorria.
Finalmente, uma hora depois, o autocarro que supostamente chegaria as dez horas, atravessou o portäo do parque de estacionamento. Um sorriso cúmplice e "hop" - lá estavamos, cada um em sua fila, sentados com as costas tortas como é normal, a caminho de Paris.
É engracado e irónico que, pela fugacidade do encontro das nossas três individualidades täo diferentes e demarcadas, eu me tenha sentido estranhamente acompanhado e munido de um sentimento caseiro, quase familiar...
O meu quarto em Tours era pequeno.
E utilmente despido de objectos supérfluos. uma cadeira, uma mesa, um lavatório quase medieval e uma cama curta a fazer lembrar uma maca de hospital em tempo de guerra. Fiz-me ao "lar" e despi-me de preconceitos. Afinal, nessa noite, seria a minha casa. Era humilde e agradável.
Depois de algum tempo para me afeicoar ao meu cantinho, dirigi-me à cozinha. Encontrei dezenas de mantimentos esquecidos em cima de uma prateleira bem artilhada de metal, provavelmente esquecidos ou lá abandonados de propósito, sem prazos de validade, devo acrescentar, por outros tantos viajantes, anteriores a mim, que por ali passaram e pernoitaram. Näo me fiz de rogado. Arroz de lentilhas verdes esquecidas seria o menu para essa noite.
Meia hora depois e o meu manjar celeste apresentava-se verdadeiramente intragável. Sorri perante o desastre. Nisto, uma australiana, da qual näo recordo o nome, entrou cozinha adentro e, com um sorriso quase maternal, ofereceu-me o resto da sua massada de tomate. Aceitei prontamente e partilhei com ela, um inglês e um venezuelano uma garrafa de tinto de Bordéus. Foi noite de póquer. Cartada atrás de cartada (nunca havia gostado muito antes) e copo atrás de copo... ...
Continuo a minha viagem. O meu renascimento incontornável. Aqui seduzo os carris côr de castanha madura com um olhar embriagado e feliz. E eles agradecem-me indicando o caminho para onde a vista já näo agarra e a imaginacäo se alarga. Ainda é Franca, disso estou certo.
A língua ainda é estranha mas já se aconchega nos meus ouvidos (frios, que está frio pa burro!) com menos brusquidäo. O meu tapete voador chega daqui a quinze minutos. Dá para um cigarro e alguns sorrisos. Ah..., e algumas fotografias oculares como que a dizer - Até à próxima vez! - sem saudade nem tristeza, afinal..., o mundo é um bidé!
E o destino corre pelo meu pé!!

Lista de sobrevivência emancipada

- pasta de dentes;
- café de saco;
- tabaco Fleur du Pays, mortalhas merdosas e filtros;
- bananas;
- Yogurt biologico;
- Chocapic francês;
- feijäo verde;
- desodorizante decente;
- batata;
- chá (näo preto);
- caneta(s) nova(s);
- cebola escura e alho esturgideiros(?);
- saco gigante de biscoitos secos de 1 €;
- acucar;
- ovos xpto;
- isqueiro novo;
- vegetais inexistentes na horta;
- chocolate;
- o que me apetecer lá...
Sinto-me enorme e tresloucado.
Compreendo em mim as vontades absurdas de querer permanecer no meio sem dar por visível o seu fim. Talvez daí nasca essa busca incessante pelo objectivo ao fundo do funil para compensar com destreza a falta dele no início das actividades e no meio das accöes que comeco sem saber para quê.
Isto näo säo notícias, näo é um relato fidedigno das horas, quanto mais dos dias. Näo é um entreposto de recordacöes, uma banca de rua com uma senhora simpática, sim, de meia idade e olhos enternecedores, que cumprimenta, fala do tempo e sorri enquanto vomita a história da sua vida dos últimos dias.
Näo pretendo mais do que sou, näo aspiro ao tanto que me querem, ou que se querem por mo ver (é engracado como esta última parte pode soar como "promover"), nem sequer ser lido. Tenho em mim a alergia pela extrapolacäo, a previsäo sempre incerta e o querer mais do que está aqui. Alegoricamente, escrevo para olhos e mirones mudos, crio para deitar fora, imagino mais agradavelmente a vida através da mancha de palavras. O meu sonho mudo do qual me fiz escravo pela certeza de näo me acordar dele próprio à estalada.
E tenho medo que me leve para onde näo quero ir, o meu eu mais profundo, e depois näo saiba de lá sair. Mas sabe bem vaguear através da caneta.
- Eu vejo que tu estás a olhar para mim...
-...Tens um olho na testa...?!
-É!! Tenho uma visäo de cento e oitenta graus.- disse ela enquanto esquartejava o pauzito de madeira que, mais tarde, serviria de fecho na bolsa de cabedal feita dois ou três dias antes.
De pernas dobradas em cima do cadeiräo e olhos semi-cerrados em busca da luz, Luísa fazia do seu seräo um momento lúdico de corte, raspa e aguca a madeira bruta encontrada na estrada.
- Gosto de estar ocupado, principalmente fisicamente. Aborrece-me sentir as pequenas partículas "indivizíveis" que me compöem e estruturam a definhar por fraqueza e falta de movimento.
Concebo os momentos mortos como uma oportunidadeúnica para o estímulo, seja ele intelectual com o auxílio de um livro ou uma conversa com princípio e, pelo menos, meio, seja ele uma reconstrucäo da minha vitalidade e de mim mesmo no caminho para uma nova exploracäo do meu potencial físico - como num intervalo duma peca em que ganhamos forcas para o resto.

27 de Outubro do ano de 2008

Terminou a minha aventura em terras francesas. Hora do adeus. A st. Pierre Cherignat, pelo menos. Foram cerca de seis semanas de risos, trocas, tristezas, aprendizagens mútuas e trabalho, muito trabalho. Na apanha da fruta, com os seus cestos de vinte kilos de macas, no trabalhar das relacöes humanas, no aprender a comunicar na língua nativa e no abrir das minhas fronteiras pessoais. A natureza acolheu-me duma forma que eu pensava inimaginável e, de certa forma, também eu a recebi bem dentro de mim.
Desde o acordar com o Sol, o cozinhar à fogueira, o trabalhar com os dedos gelados a pedirem mais tenda, o partilhar destas tarefas e das emocöes, o deitar quando o próprio Sol se deita, o adormecer ao som do chamamento de acasalamento dos alces, as remadas matinais na canoa... Tudo se desenrolou fluidamente ao ritmo da pulsacäo viva. Tanto à vista desarmada e tanto mais por detrás das palavras que posso aqui perspegar.
Vou sentir saudades do casal holandês e da sua "quinta" onde, dia sim dia näo, ia de manhazinha buscar o leite acabado de sair das tetas duma das vaquinhas e o queijo que eles próprios produziam em casa.
Entreguei-me de corpo, alma, e sobretudo bracos, a todas as tarefas que surgiam. Rachei a lenha para o fogäo que nos aquece e alimenta durante as noites já frias de Outono. Tanta lenha, tanta madeira forte, tantos veios, tantos nós... Fiquei agradavelmente surpreendido com a facilidade com que as minhas mäos se adaptam à labuta diária do campo rural. O machado era eu e eu era furiosamente o machado! E o ar frio no meu nariz fazia-me querer mais... E mais!
Mungi vacas que tinham nome, aprendi como tratar o tabaco desde a apanha ate ao fumo viciante. Ajudei a fixar uma cama de madeira numa carrinha mágica de viagem. Comi vegetais da nossa horta e li o desassossego em sossego. Visitei três vezes a casinha todos os dias. O equilíbrio manifestava-se. Esqueci a carne e o peixe e descobri a beterraba, a corgete(?) e o chapati (päo indiano).
Esqueci a água canalizada e a forca eléctrica e descobri o barril de água gelada para banho e afins e a fogueira de lenha difícil, ainda molhada.
Parece campismo... Mas é de um gosto selvagem.

La vie en rose

Talvez a estrada me permita o devir,
esse movimento desgarrado
que observo nas centenas de espigas de milho
quando o Outono comeca a soprar
e as folhas se iniciam, rodopiam no seu dancar,
à beirinha dessa estrada sem fim...
As manhas väo acontecendo por acaso
quando eu empurro as portadas azuis
e o Sol, esse luxo indescritível que aquece
me permite sem pagar
me sorri sem se apagar
sem promessas väs de ficar,...
...É a vida que apetece, de novo o dia que acontece!


Carrémont. La vie en rose!

Mais

Tenho tido medo das decisöes.
Tenho medo
chego mesmo a amedrontar-me
com o clima e as suas variacöes.
Assustei-me com o descontrolo
das accoes, do tempo cronológico,
da urgência do desafio
e das vozes pesadas, da vida por um fio.
Enregelo-me até aos ossos
imóvel, catatónico a contas
com os dias que vêm, as horas seguintes,
quando me olho, me perfuro
na imagem que se reflecte no espelho
e parecemos dois, ...os ouvintes!
Tenho receio do que será
estar, viver e acontecer-me lá
no que ainda näo existe,
...entre a paixäo e a razäo,
minha luta que näo desiste,
e é por isso que acelero,
evado-me, em cima, à boca do funil,
vôo rente, vou em frente
vivo vivo, vivo o presente,
à luz de mais, de aventuras mil...

06/08/08

Deste estar no meu Porto querido...

Sou sem pudor o que hei-de fazer de mim...
Sou apalavrador, sou sonhador
de ser apenas porque sim.
Sou um viajante anónimo
estrangeiro de mim
sem mapas, trilhos ou sinais do obrigatório,
sou corrida, sou velocidade,
passo pequeno, tempestade, adúltero do contraditório.
Sou amante, íntimo do fortuito e da dôr,
estou longe, tão longe, sou eu o caminho que me foge
da realidade dos entretantos, do aqui pra já e do que for...
Estou no centro, na orla vermelha da chama,
no átomo, no núcleo do sempre meu mundo,
protegido pelo quente-rugoso do granito,
vivo porque me quero, porque me quero deixar ir,
lotaria opcional, guitarra das facas, passional,
de cigarro na mão e corpo mais que dorido,
sorrio a espaços e a espaços não rio
nesta janela do tempo, aqui em momento, deste estar no meu Porto querido...!!

30/07/08

Muro

Um muro, um olhar de surpresa,
uma garganta que seca,
olho aberto, focagem demorada,
e a posição de gato que tem medo da facada,
forte e vulnerável mas seguro na defesa.
As cordialidades à porta, enfim os obrigadas,
secos, navalhadas, cereja das coisas sem importância.
Das novidades não se fazem histórias,
abreviadas a um tudo-nada e restos de memórias...
Uma mentira suave aqui, uma indiferença que queima ali,
um estar que não se compadece com a zanga
que se reconhece,
o resigno-me, o canso-me, o esperar que não aparece
entre sorrisos alugados
ao à-vontade dos ex-amados,
e sem demora a anuência,
o assentimento, a desistência
ao prometer intransponível,
ao que está em ser que morre...,
que não sei ter sido algum dia disponível
e a despedida cirúrgica por conta de coisas antigas,
assim, aparentemente, como coisas sem importância...

BERRO ÀS DUAS

A INSUPORTÁVEL SURPRESA...
REPENTINAMENTE O FASCISMO AMEDRONTA-SE.
A ORDEM NATURAL DEBAIXO DE UMA PEDRA
NÃO HÁ DIRIGISMO, NÃO HÁ DEDOS QUE APONTAM,
NÃO HÁ CORES PRÉDEFINIDAS NEM VIDAS DA REGRA,
O ESPAÇO NÃO TEM OLHOS, O FIM É DE QUEM VIVE,
O CAMELO QUE FECHA OS OLHOS NÃO É PULSO, CABRÃO, NÃO É LIVRE!

AS PAREDES QUE NOS ENCOLHEM SÃO FEITAS DE PAPEL DE ARROZ...

NÃO SÃO PRÓPRIAS, SÃO ENGANOS,
OÁSIS E TIRANOS,
HERDADAS POR QUEM AS LÁ PÔS,
E O SENTIDO..? - QUE SE ADULTERA!... E A RAIVA
MAGNAGIGANTÍSSIMA CRATERA,
SURPREENDE-TE ANÃO, ABRE A TUA MÃO,
FOGE MEDO DE TI, FOGE-TE VAZIO,
ENGRENA E SANGRA DANADO CORROPIO,
SOLTA O AI QUE TE VIOLA DESDE OS TEMPOS DA TUA ESCOLA
SOLTA O MEIO, SOLTA O AGORA, LIVRA-TE DO AGRAFO,
EU CORRO COM OS MEUS OLHOS
E AS ENTRANHAS DE FORA,
QUE NOJO O MEU MUNDO ADORA,
E BERRO, EU AMASSO, EU PERTENÇO AO QUE FAÇO,
E NADA, MAIS NADA NEM NENHUM
ME PRIVARÁ DE MORDER NEM
ME CALARÁ DE TE VIVER
POETA, CARALHO, PUM!!!!

24/07/08

CLICK!!!

Agarro-me ao que me levanta o olhar,
nessa dança egoísta e impaciente
dos corpos que não se entregam.
Aventure-se no caminho
o sol dos duros lá da rua
e as sombras incólumes e anónimas
que pensam conseguir usar.
O sorriso desconfiado
do velho no banco de jardim,
às quatro da tarde, hora de calor,
imposto por um aceno intrusivo,
demasiado adentro para o habitual,
e a fotografia à espera.
A carapaça não salta, segura-se à espreita,
enquanto o cigarro vai queimando de mansinho
cúmplice da trama que vai sendo feita
estende-se a rede devagarinho,
e a fotografia à espera.
Enganam-se os minutos com frivolidades
e desatenção
no banco oposto ao meu fetiche sufocado.
O peixe ri, eu rio,
o peixe olha, eu desvio,
santo deus, que loucura, desvario,
e a fotografia à espera...
Da coragem para investir e perguntar
vão seis metros de passo largo
e assertividade no andar!...
Qual sorriso, qual simpatia,
é uma montanha sem empatia,
uma parede de ferro e de betão
e eu de cócoras e entravado
enquanto m’atiram um rotundo não!
E a fotografia que desespera...
Agradecido por cortesia,
educada e atempadamente,
afasto-me nariz baixo no Rossio.
Não sou capaz!
A comichão aperta cem metros à frente
e, embalado na minha tentação,
arranco sem pudor e volto para trás.
Eis-me, suspeito, escondido por uma trave,
Criminoso sem respeito,
Fuínha dos piores, sem covil nem irmandade.
Haja quem me denuncie,
aqui de joelhos,
e aos céus brade!
Mas o plano congemina-se ao estado de perfeição,
gélido e glorioso, a expressão à disposição;
o feitiço finda-se e assassina de vez esta tensão...
CLICK!!!
E a fotografia que saiu bera...!

23/07/08

o plano...

A exigência do plano,
urgente e absolutamente conflituoso,
não faz esquecer que sempre existiram
cantos escuros e ângulos agudos
na minha pista de dança.
Suponho que o plano,
ausente em consciência
falha por episódica demência,
fugindo à sua orientação natural
- daquilo que é plano –,
que caminha a direito e por direito,
algo confuso entre o correcto
e a falta anunciada do verdadeiro afecto.
Na indecisão oblíqua
entre esquerdas e direitas
o plano regozija-se por ser assumido por defeito.
Estranha calma esta
de querer “planar” mais alto...

O que for...

Sinto-me, por vezes,
demasiado sozinho...
Talvez não por falha
ou incumprimento,
talvez por falta
ou má-sorte no envolvimento, no comprometimento,
mas, acima de tudo,
porque acredito nesta história de sonhos
a que me entrego
nesse sorriso que me rasga
ao som de uma melodia,
que me puxa e envolve
ao ponto do corpo se esquecer de inspirar,
dos dedos tremerem
e tudo o resto à volta parar,
acredito que,
tal como a caneta vive nas minhas mãos
quando a solto para sentir
também o propósito das coisas se arriba
e afirma
nas situações que nascem todos os dias...
Sou dubiamente empurrado a acreditar
que as decisões são o peso fulcral e terminante
desta balança em que vivemos,
provavelmente fiel ao silêncio de algo mais forte,
antigo livro de regras omnipresente,
que nunca nos avisa do acerto das escolhas,
quando, no fundo,
é na solidão do meu quarto que descubro que
os caminhos desenhados podem sempre ser lapidados
pelos acasos que nos assaltam.
...e os propósitos do amanhã,
fiéis à curiosidade dos porquês
e ao meu querido sobressalto
saberão ser o que forem...

22/07/08

Na praça dos encontros

O conforto que se encontra no tratar das situações
do agora e da vida concêntrica,
das teorias dos conjuntos e das melodias privadas,
do imposto comum exorbitante da coisologia e da musicologia,
pelos nomes arbitrários e verdadeiros,
à luz própria de cada cabeça,
íntimos ao linguajar que conhecemos desde sempre e
ao batimento percussionista que vem de dentro
é apenas..., e apenas às vezes, comparável
ao sucesso tão imprevisto quanto desejado
que se nos afigura, em sobressalto,
na presença de outro ser, outro alguém,
diferente em espaço e em consciência,
que as compreende sem demoras hesitantes
e as devolve à sua, também única, maneira.
A composição de dois solos
implica, como é sabido,
uma orquestra afinada e um maestro sagaz.
Eliminemos, pois, deste cenário
o dois e o seu amigo necessário – o maestro que não satisfaz.
Remanesce uma orla musical, fabricada internamente,
construída ao nível do órgão bruto e da percepção quase carnal,
um solo conjunto, confuso aos estrangeiros,
um princípio de comunicação avesso
forjado em sociedade secreta e íntimo ao saber
de quem fala a mesma língua.

21/07/08

A história de Veronika e Edouard - In "Veronika decide morrer" de Paulo Coelho

Na fronteira dos meus sentimentos contrabandeei loucura
prisioneiro do conjunto e da razão,
passei, fingi e olhei para o lado
revoltado indigesto
indisposto de amargura e inaceitação.
Os actores sucederam-se, inconsistentes,
puxando o pano à vida e o protagonismo de ser, simplesmente ser...
Como nos olhos de uma menina
um dia, voltei a ver..
Dos seus olhos verdes saía música,
na força da sua revolta ouvia o bater do piano,
encontrei a âncora que não me permitia ir à deriva
dos ventos incompreensíveis,
das correntes fortes e sedutoras,
do feitiço que as sereias ofereciam
quando atraíam os perdidos do seu Norte
ao leito, por fim, já sem forças, da irrealidade e da morte.
Recuso-me a ser encaminhado,
escolhi as cem realidades da sorte
às quais me entreguei sem forças para mais
até ter ouvido a sua doce melodia...
Não mais pararei de pintar!
Os loucos riem-se alto e gritam de loucura, claro está,
Atrás do véu transparente que cobre a cama
E finge que esconde o amor que por lá se debate.
Que vive, se tiver de viver.
Que morre, se tiver de morrer.

Escrevo sem poder parar

Sou profeta, sou rei,
Sou estéril e cru,
Senhor de coisa nenhuma e de certezas encontro-me nú.
Acordem os viajantes e as dançarinas do ventre,
festejem-se os momentos na mais secreta altivez,
assombrem-se os coríntios que a guerra acordou,
e o fim do mastigar apressa-se a chegar.
Pertenço ao covil dos salteadores,
morada desconhecida de vilões e de galanteadores,
reconheço nos meus sentidos a leitura atabalhoada
e a aventura dos que amam sem saber como os seus amores,
o desassossego primitivo e o fogo tenso que agarra, que amarra,
e a surpresa que vê, surpreendida por observar.
Descubro a paz na mais incerta das inquietações
no cerrar da noite, debaixo dos candeeiros de bambú paralelos,
no acordar e no sentir da tristeza e do riso mudo
enquanto escrevo sem parar, sem pestanejar, sem ordem para parar!
As lágrimas e o sangue misturam-se nas palavras,
e na doce melodia que arrebata este momento
de vida em pleno fulgor
enquanto escrevo sem parar, sem pestanejar, sem ordem para parar!

Cortaste o teu cabelo...

Cortaste o cabelo.
Sorriste quando passei por ti.
Adivinhaste a côr do meu sorriso
por um segundo quase eterno.
As madeixas escuras escondiam-te a testa
a espaços de luz e de sombra
e o calor cru-avermelhado
preenchia-te quase na totalidade as maçãs do rosto.
Os sonhos, esses, eram da côr dos olhos
que acriançadamente me abraçavam
e a boca..., a boca era um ninho doce
quente e único, de contorno aveludado,
e espreitava o convite a juras de agora e para sempre.
Cresci e dancei dentro de mim
naquele segundo quase eterno...

Vilanagem

A fuga processa-se devagarinho.
O caminho difuso e ainda incerto
Da inocência primaveril
deu lugar à longa linha oblíqua
de ponto entre ponto,
o caminho mais longo,
que, após descerrada a porta,
não cessa o seu distanciamento.
Lentamente, a água foi ficando quente,
não aquecendo! – que isso seria perceptível
a qualquer cego mesmo de um só olho,
foi ficando quente, quente,
adocicada em banho-maria,
que assim o distraído não se arriba e a rã não foge...
Oh.. doce fim de tarde que não acaba...!
Prestas favores de arma alçada
Escondida pelos folhos da tua manga que aponta
E me diz onde sentar.
Não me deixas sangue nem voz,
Não me permites o alongar dos braços
E o desprezo pela saída fácil e atroz...
Reconheci-te mal te vi, o fio dos teus traços,
Vituperavam a força da minha vontade.
A inocência encarregou-se do resto, soprando,
Eternizando o que não deve ser eterno,
Mortificando o que não deve ser esquecido,
Prostrando a vilanagem, esse fartar de sorriso malandro.

Escreativar... Comentário para Allen Poe

Tem-se escrito, tem-se falado,
tem-se dito e encorajado
que os sons de dentro
muito nos assustam,
muito e todos os dias
apenas a nós nos custam.
A voz pela voz,
o ar que se engasga,
a cortesia ou o desaforo
do som quando rompe pela casca
emprestam ao aprendiz
a vida dissonante, aprimorada a dois tempos,
creditada sem rascunho
(que este perpetua o momento)
e sentida no Agora.
Assim se aprende
-pensa o aprendiz;
assim se "poema"
-grita o esófago poeta...


"Esplanando"...

Poupar papel.
O papel não se queixa, não se poupa,
não se encolhe no seu calor, não se vira sem saber porquê,
abusa-se com carinho!
As palavras não nos fogem ao raciocínio elementar,
grotesco na sua forma,
por vezes até algo rudimentar,
perfeito até ao âmago do seu conteúdo carnal.
Não. Não se riem de nós. Não se escondem debaixo de capuzes,
assustadas ou não.
E o rasgão das ideias não tem dobras
ou linhas de direcção.
Suspiro, papel meu, vê o marquês que me espreita,
contente, no seu cadeirão de pedra, altivo e imutável,
senhor de Pombal, centro de espirais,
e círculos acelerados, como sempre,
aqui sentados, tu e eu,
neste canto alugado da esplanada.
Dúvidas...
A Norte ou a Sul,
Onde repousa o olhar do meu mirone neste momento...?
A ignomínia da rotina
e os medos em surdina não me oferecem desencontro.
A táctica dos sentidos lógicos deu lugar ao uno,
espera-me pois a primeira decisão e o confronto.
Olá riqueza dos pormenores,
côr volátil dos olhos embriagados,
das formas e dos momentos menores... Bem-vinda a mim novamente!
Mas explica-me...
Porque sorri o miúdo graúdo do outro lado da vidraça da montra?...

Inquietação

Inquietação, inquietação
cruel inquietação,
inquietação, inquietação,
vil, agri-doce inquietação,
causa..., tudo,
causa,
casa,
tudo em minha casa,
de mim para mim,
tudo em causa,
casa sem causa,
casa e causa, por (talvez) causa e, afinal...
tudo em causa
ou cousa que causa e não casa.
Enlouqueço... e depois
Esqueço!
E dia novo se me apresenta
de mansinho, devagarinho,
cumprimento confiante o novo propósito radiante
apenas sem fé na sua estadia prolongada.
Será que enlouqueço?
Verdadeiramente louco
e depois me esqueço?
Sorrio por causa
da inquietação sem causa:
viverei inquieto por causa ou ...
sou, sem compreender, inquieto para ser?...
Ainda bem que enlouqueço,
por príncipio e aceitação do agora,
e escrevo por causa (e só para escrever!)
ou não haveria por onde fazer sair esta inquietação, inquietação...!

Lembro-me do Porto

As ruas eram tão longas,
As minhas pernas tão pequenas..
Revivo saudoso os muros gigantescos ao fundo da rua,
escorregadios e inultrapassáveis,
que aprendi, à custa dos meus minúsculos joelhos,
a conquistar.
E o cheiro a ar húmido-quente
nas noites frias de Inverno,
cachecóis compridos e bóinas submundistas,
paisagens de gabardines compridas flutuavam rente ao chão;
e os edifícios lúgubres e rendilhados afagados por ruas de luz ténue,
de roupagens côr de pedra escura, confortável ao toque,
companheiros gigantes e silenciosos da melancolia mal-interpretada.
Às vezes lembro-me da Avenida,
arena de correrias e habilidades,
conversas do mundo e encontros suspeitos sem veleidades,
com as suas faces e figuras alegóricas esculpidas ao alto
guardas mudos do que se passava todos os dias lá em baixo,
espreitando sorrateiramente os transeuntes
da beirada dos seus postos de cinco e seis andares.
E os candeeiros solitários que davam a sensação de falarem,
penteados de amarelo-torrado, que me sossegavam,
quando por ali passava sozinho.
E recordo, ainda hoje,
a chuva, que não me cansa,
que me sussurrava, indiferente ao burburinho,
-Vem, corre através dos meus braços e dança!

Certo de que um dia...

Se um dia eu morresse
Queria ver pratos com salgadinhos em cima do caixão
E serpentinas verdes e amarelas penduradas no portão.
Cadeiras de plástico azuis, mesas de desmontar
E copos descartáveis de festa que não se pudessem voltar a usar.
Garrafas, garrafões, minis e canções,
Sorrisos em coro e, por vezes, grandes gargalhadas sem decoro.
Música folclórica e bailes de cem pessoas,
E rapazes e raparigas sem medo de se convidarem para conversas e noites boas.
Um padre de saias compridas e óculos no fundo do nariz
Bêbado mas sorridente, e um coveiro com uma tenda de bebidas à base de aniz.
Os putos descalços, de bola no pé, aproveitando o que restar da relva
E sevilhanas de matracas na mão e dançarinos exóticos de Huelva.
Ciganos em correria, calças e camisas de desconto na mão,
Churrascos e assados de feira e uma banda filarmónica de coreto... porque não?!

Não se chama loucura...

Lunático, eu?!
Lunáticos os que não acreditam
Nas façanhas e promessas
Dos seus super-heróis privados com capa,
Sinais inequívocos da sua loucura deserdada,
Sem sentir a imensidão bruta de olhar nos espelhos dos corredores
E ver, ainda, no centro das suas vontades
O miúdo de boné que assalta as dúvidas
Dos momentos mais sensatos...
Provavelmente, por falta de Invernos seguidos de grandes Primaveras
Vividas, com receio, é certo,
Na companhia do boné...
Pra lá das portas do hospício,
A loucura prolifera escondida nas gavetas de cada um.
Talvez, na loucura dessa transparência,
Quando a água se agita,
Se construam castelos, pé ante pé...

Por vezes... Imagino um desenho

Por vezes... Imagino um desenho.
É grande e colorido
Como um jardim habitado aos domingos.
Um jardim relvado com lagos e cascatas,
Flores de alegria insuspeita,
Sombras ali poisadas com carinho
E moinhos... sim, grandes moinhos!
Imagino-o fluído, encosta a descer,
Suspiro e mergulho,
Rebolo, vida e amor a nascer,
Viro-me e sorrio
Com as maçãs do rosto encarnadas e os olhos muito abertos
E a surpresa própria de um garoto
Com o desejo de ficar mais um pouco,
Antes que o Sol se vá embora...

Lume

Corro perplexo, prometido das lendas
E dos tabus,
Das histórias da montanha desenhadas nas fendas
E dos preconceitos e certezas
De quem corre com os cotovelos nus.
Corro disperso,
Cortês para com a mente que trabalha,
Sozinha à luz da vela e ao som da navalha.
Não há voz nem melodia, apenas...
Um vociferar confortável que me chega da esquerda,
Junto à janela.
Cerveja e mortalhas...
E o fumo diletante que foge para aquela esquerda.
Enquanto Waits berra baixinho,
O piano sossegado pela cortesia
E o branco desmaiado do cubículo
Sussurram... para não afectarem a cegueira
E o sorriso mudo de quem bate no teclado.
A cabeça tomba para trás
E para a frente
Ao ritmo infernal, quase abdominal,
Rasgando as entranhas do homem
Oferecendo o poeta que, agora,
Nada mais exige.
O formigueiro das aventuras de papel
Espreita, curioso, as escalas intermináveis
Dos dedos que não se cansam,
Das ideias que não amansam.. e fogem,
Debaixo dos olhares turvos,
Pelo buraco da fechadura da porta da rua.
Corro imerso, disperso, perplexo,
Afogado no caudal da minha droga perfeita:
O bater de mim próprio
Que enche e quase rebenta..
Força Tom, dá-me lume!!

O dia seguinte

Suprimo as vontades e o egoísmo
por uma internacionalização de mim mesmo,
obrigo-me à emigração ilegal
e à navegação para lá da intersecção dos mundos
onde o mar se eleva, desconfiado,
assustado,
talvez pela ousadia da intrusão,
talvez por outra razão,
não estivesse eu a rasgar as correntes cartografadas
e a segurar, sem torcer, a porrada oferecida pelas ondas.
O Novo Mundo tinha praias quentes
e realidades diferentes
quando o pisei pela primeira vez.
As palmeiras ainda pequeninas
e os rochedos em bruto,
os botões de rosas vivas fechados,
a floresta virgem e as enseadas inexploradas
Prometiam e assustavam simultaneamente...

Explosão de dentro

És uma estrela cadente e fluis através do meu sangue...
vives -te e revês-te no desenrolar do teu caminho
com a força, as lágrimas
e o grito mudo que explode, todos os dias,
apenas um bocadinho, todos os dias,
com a explosão ensurdecedora de um incêndio encurralado.
Bruto, afiado, empresta-me murros
fogo de outros mundos,
espanca-me por uma boa razão,
expulsa o outro de dentro de mim e vive-me
só a mim, pela primeira vez... outra vez...
Incendeia-me o peito
com a paz de espírito necessária
que sempre me acreditou chegar mais longe.

26/06/08

Velas e Ananases

Era uma vela encantada que sorria e dançava no topo da sua ribalta feita de bambú. Chamava-se Cana Empinada mas era mais conhecida por Canas pelos objectos desorganizados que se sentavam ao seu lado no balcão. O ar satisfeito com que girava e rodopiava sobre si mesma devia-se à sua influência latina ( toda a gente sabe que os latinos passam a vida a rodopiar sobre si mesmos) e à altivez que a sua estrutura de canas de bambú lhe conferia em relação aos outros. Canas fingia que era empurrada para cá e para lá por uma amiga que, de vez em quando, normalmente durante a noite, a visitava quando as portadas do T1 se destrancavam e os estores estavam distraídos a meio caminho. - É a corrente de ar! - parecia dizer entre dentes, desculpando-se. Mas os outros não iam nisso! Não senhora! O copo de água de 2 dias, a mini de cerveja meio cheia, ou meio vazia, dependia do seu humor, as bases para copos e tachos, as folhas soltas rasuradas, o isqueiro, as mortalhas, o cinzeiro, os filtros e o tabaco de enrolar não se deixavam enganar facilmente. Já a haviam topado há muito. Até os livros alugados da biblioteca municipal, cuja estadia por aquele balcão era relativamente curta, assim como umas férias de Março a pedirem para fugir à rotina, já haviam percebido o ardil da vela que dançava e nunca se apagava.
Apesar de toda esta azáfama nocturna, Canas sentia-se algo só. É certo que era graças a ela que todos os outros conseguiam ver-se e perceber que ainda ali estavam e não dentro de um armário escuro e com cheiro a bafio e a CD´s de há 4 anos. Ela sabia disso. Porém, nunca conversavam muito com ela. Na verdade, deixavam-se simplesmente estar para ali muito quietos a noite toda. Talvez por saberem que durante o dia iriam ter trabalho e aventuras excitantes novamente.
Por isso, quando chegava a noite, Canas gozava ao máximo e gabava-se de ser a única a ser importante.
Um dia, certa noite mais precisamente, Canas conheceu uma meia fatia de ananás. Sentado num prato cinzento pedra, o dito ananás começou a falar avidamente com ela. Canas achou aquilo muito estranho. - Tu falas? - perguntou.
- Claro! Tu também, suponho, ou estou a ouvir ecos?! - retorquiu o ananás.
- Pessoal, pessoal! Um ananás que fala! - gritou Canas ainda surpreendida.
A surpresa foi geral. Todos os objectos observaram o ananás, estupefactos e incrédulos. Nunca tal haviam imaginado. Os ananases que, por vezes, tinham visto nunca haviam antes falado. Vinham daquele lugar estranho com duas portas brancas e normalmente desapareciam logo mal chegavam ao balcão sentados naqueles pratos cinzento pedra. Isto era realmente estranho e digno de reflexão. Assim sendo, apesar dos olhares atónitos, ninguém esboçou sequer um som que fosse face ao inesperado ananás que falava.
Mas canas estava contente. Tinha, finalmente, descoberto alguém que conversava com ela e lhe respondia.
- Vens cá muito? Nunca te tinha visto. - perguntou Canas.
- Não. Não tinha nada para fazer no frigorífico e vim dar uma volta para aquecer um pouco...
O Meia-Fatia, era assim que se chamava, era mordaz e talvez excessivamente irónico quando se dava com outros objectos. No entanto, por trás daquela aparência agressiva (de ananás), escondia-se um ananás simpático que, no fundo, no fundo da sua fatia - perdão, meia fatia - só reagia assim por se sentir mal e triste a maior parte do tempo. É que ele tinha medo do escuro e no frigorífico onde ele vivia estava sempre escuro pra burro. Assim, e como era o único que dentro do frigorífico tinha medo do escuro, os outros habitantes da gronelândia das cozinhas gozavam com ele. Como imaginam, a vida de Meia-Fatia não era fácil. Para não falar do terrível sentimento que se instalava no ar de cada vez que se abria a porta do frigorífico (palavra chata e comprida. Doravante, passarei a referir-me ao.. ele como Frigo). "E agora, será que sou eu??" - pensava Meia-Fatia sempre que isso acontecia.
Canas, pela primeira vez, sentia-se contente. Já nem se queixava da sua amiga corrente de ar. E era ver como ela dançava. Pra cá e pra lá, pra cá e pra lá, pra cá e pra lá, pra c... Bom, acho que se percebe! Tinha arranjado um amigo que não se calava a noite toda, não olhava para ela com aqueles olhos críticos e de algum desprezo que havia enfrentado a vida toda naquele balcão, não a mandava apagar-se para poder dormir nem ser outra coisa qualquer que ela não soubesse ser. Ok, podia ser mais simpático mas, que diabo, era um ananás!
Os dois falaram a noite toda. Riram, falaram alto, contaram histórias de velas de outros tempos e ananases corajosos, gozaram com os outros objectos em conjunto... A noite mais longa das suas vidas! Nem valia a pena os outros objectos resmungarem e vociferarem acerca de horas mal dormidas e de luz a mais. Os livros já imaginavam o dia seguinte, com as páginas mal abertas de sono e as olheiras na lombada.
Canas e Meia-fatia tinham descoberto um momento só dos dois e não pretendiam abdicar disso custasse o que custasse, doesse a quem doesse.
As horas foram passando, passando e... passando. Quando as primeiras galinhas, galos, faisões, perús e não sei mais o quê, que anda para ali no quintal do meu vizinho, começaram a sua sinfonia matinal em jeito de orquestra afinada por um surdo-mudo, e com os primeiros raios de sol (Qual quê! O T1 dá para as traseiras) a espreitarem timidamente pelas frestas do estore mal fechado, a voz de Canas esmoreceu um pouco. Ela sabia o porquê mas não queria que Meia-Fatia se apercebesse. Havia ficado acesa tempo demais. O seu pai, agora no céu das velas, havia avisado Canas que nunca se deixasse ficar acesa durante tanto tempo. Mas, sem perceber exatamente a razão, Canas fê-lo e sabia que isto iria acontecer. Aos poucos começou a ficar pequenina, já não dançava com tanto fulgor e já olhava Meia-Fatia nos olhos em vez de apenas lhe ver a testa. Claro que Meia-Fatia se apercebeu que algo estava estranho.
- Que se passa? - perguntou-lhe. - Estás farta da minha conversa é?
- Não Meia-Fatia. Estou a morrer.
- Como?! Ainda agora estavas a dançar e falavas que te desunhavas.
- Eu sei. Mas agora estou a morrer. O meu tempo acabou. Não tarda terás outra vela para conversar à noite e esquecer-te-ás de mim.
- Mas... eu preciso que fiques aqui. Quero conversar contigo. Não quero ficar sem a tua luz Canas.
- Não posso. Mas não fiques triste. Foi a noite mais feliz da minha vida. Valeu a pena estar acesa toda a noite enquanto falava contigo. Pela primeira vez, senti que era importante no que fazia. Vais ver, amanhã já terás uma companhia nova aqui no balcão a dançar e a falar contigo.
Meia-Fatia calou-se e observou os últimos momentos da sua amiga. Regozijou-se pelo facto de ter sido alumiado por Canas uma noite inteira e acreditou que brevemente iria ter uma nova vela, viçosa e dançarina por companhia. Começou a sentir-se melhor. Não é que não estivesse ainda algo triste. Porém, como é sobejamente conhecido, os ananases não têm memória nenhuma. Ou antes, têm memória curta, de peixe azul! Aos poucos já tentava falar com os livros de biblioteca e com a garrafa meio cheia (ou...). O dia estava a despontar, não estava escuro, iria conhecer uma vela nova... Tudo estava bem! Sim, já estava despreocupado e contente. Canas havia sido importante para o que ele precisava. Apenas e só. Agora, a vida continuava.
À medida que o dia ficava mais claro e os animais do lado mais barulhentos, comecei a ter sono (finalmente - 7 da manhã!!) e fui-me deitar. Amanhã - daí a um bocado - era outro dia. Cheio de coisas para fazer, psicólogo para falar, velas novas para comprar e ananás para o pequeno-almoço...
 
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