21/12/08

O cheiro. O cheirinho, dito de forma carinhosa para comigo mesmo, do meu cachecol às riscas de cores terra, da rua fria que fria embala o meu nariz, do meu hálito, respiracäo quente, que se reflecte nas malhas do meu cachecol e me embriaga sozinho. O cheiro inverosímel de casa no espaco curto entre mim e o meu cachecol. Como se sentisse uma reposicäo corpórea, quase palpável, tardia de quando me aconchegavam as roupas da cama naqueles minutos antes de adormecer.
A regra surpreende-se a si própria. Determinada face implica tracos mais ou menos pungentes e únicos, parte do mesmo grupo-associacäo de tracos pungentes e únicos. Determinada roupagem personifica, em estilo e etiquetagem, formas de corpo pungentes e únicas, afiliadas ao mesmo grupo-associacäo de formas pungentes e únicas. Por vezes, ao longo da minha vida, retirei o átomo do seu espaco, amordacei-o e esmiucei-o, apenas pelo observar da curva das sobrancelhas, da altivez da gola, do desenho dos cabelos ou da largura dos olhos na arte de olhar. Convicto que na construcäo do todo emerge pela escotilha o ingrediente importante, o "quê" verdadeiramente interessante, a peca do puzzle que, agora ou mais tarde, se ajustaria, dando sentido ao encontro...
Apecebo-me, aqui, talvez mérito do meu eu agora, da desunida distância que se percorre entre o fio do cabelo e o sorriso, entre o olhar pessoal e a lânguida curva do corpo, entre a roupa usada e o ser que anda. Pecas de um todo que se completa único em si mesmo.
As formas, as roupas, o olhar e a atitude näo emprestam nem sugerem nome ou cartäo de identificacäo.
As ruas de pedra escura säo a montra das diversidades, o passeio da multiplicacäo das individualidades.
As pessoas afáveis näo se movem de determinada forma, as pessoas distantes ou rebeldes näo se cruzam nos olhares de determinada forma, as pessoas gordinhas näo usam a roupa X, as pessoas magrinhas näo se vestem de forma Y, a idade näo oferece formas de actuacäo e o social näo convida a estereótipos de relacäo. Todos säo todos e nenhum é obrigatoriamente nenhum. A diversidade serve-se a colheradas de "multi-mágica" e "pluri-uno".
Guitarras em todas as línguas... Feitios e conversas de todas as nacionalidades. Encontros de cariz simplificado, sem pressas, obsessöes, pagamentos, trambolhöes... Bom talvez um ou outro devido às caipirinhas austríacas. Somos um remoinho de dialectos e nacionalidades que converge para um único centro: a descoberta acessível, a curiosidade apetecível. A sala tem sofás azuis e prateleiras com instrumentos diferentes, aqui e ali, pelas paredes. Os candeeiros estäo fraquinhos e o olhar é aberto de mim para ti, de ti para mim... A música flui de personalidade em personalidade e a embriaguez abraca o mundo. O resto näo é agora, näo é aqui. Os mails, por sua vez, trocam-se em escocês...
Viena rutila de forca, num pequeno universo de formas gigantescas e sólidas, inatacáveis. Com cerca de dois milhöes de habitantes, Viena cresce e resplandece à velocidade dos meus pés na transposicäo de uma praca que parece näo acabar, no percorrer das margens do Danúbio, no alargar da vista, grande angular, perante as ruas do seu centro repletas de gente e eléctricos encarnados, reencarnados do tempo da guerra. Atravessam-se épocas doiradas nos muitos quilómetros que a cidade oferece ao "andante" curioso. Curioso e extasiado. A boca näo se me fecha. Näo consegue. Os olhos näo se distraem. Contraem-se acometidos por uma fome desenfreada de mais pormenores.
A biblioteca que guarda as costas à praca onde nasce a Rathaus lembra-me o Mosteiro dos Jerónimos em Belém. A grandeza das formas e o requinte nu dos contornos fazem-se corar a si próprios minuto a minuto, segundo a segundo. Näo vislumbro indícios de fealdade ou abandono. Nem de pobreza, material ou de espírito. Ao cruzar os inúmeros mercados de rua, ajuntamentos de passagem obrigatória na quadra natalícia, semeados em todas as pracas, com uma chávena de ponche quente de macä (delicioso e sobretudo quente!), encontro um convívio urbano salutar e convidativo. Como se ao dobrar de cada esquina um grupo de Vienenses cantasse "Traz um amigo também" do José Afonso. Aqui, näo sinto falta da máquina das fotografias. Tenho a nítida consciência que me é impossível captar a grandeza do espaco através da minha objectiva. Näo me atreveria a tentar.
A Rathaus - Câmara Municipal - transgride todas as normas conhecidas do semblante comum que um edifício desta natureza deve ostentar. Mais uma vez evoco os Jerónimos. Aqui, porém, quem cora säo os Jerónimos. Näo de vergonha mas de simplicidade, ainda um menino edifício a crescer.
A roda gigante que espreita Viena em todas as direccöes reveste-se de um romantismo nostálgico que se perde na distancia do olhar. Viena mostra-se como é, sem enfeites ou máscaras, no rodar lento e inebriante da sua roda gigante no Pratter. Lembra-me a vista do cimo da Sagrada Família em Barcelona. Com uma mäo seguramos o corrimäo, com a outra... ... a emocäo.
Atravessei horas, passo após passo, com os olhos arregalados e só me cansei já eram oito horas da noite. E cansei-me verdadeiramente! Apetecia-me dormir, esperar pelo mais que viria no dia seguinte. Näo fosse o facto de dar ouvidos ao meu estômago totalmente esquecido e desprezado e ter-me-ia arrastado imediatamente para o meu beliche.

12/12/08

Castelo de Sartel... Quando for grande

Quando fores grande näo te queres desenquadrar.
Quando fores grande näo te queres perder a ti e ao que te sustenta.
Quando fores grande näo queres trepar às árvores erradas pelas razöes erradas e näo queres a promessa de que ali de cima a vista é mais bonita.
Quando fores grande näo queres brilhar no centro da prateleira onde estäo os alfarrábios das gramáticas rectílineas, sem curvas e sem as vaidades de quem, vaidosa e orgulhosamente, reclama o seu espaco de vivo, de pés distraídos no seu chäo. Ou deverei dizer viva...!

11/12/08

Hoje sinto-me irritado. O frívolo enevoado invade-me a cabeca sem pedir licenca uma vez mais. O perigo surge do universo afectado ser maior. A impertinência excessiva é uma vindima que aparenta näo ter fim, que cobre os os altos e baixos da montanha a perder de vista. Näo se trata de um sentimento disfarcado mas antes de um disfarce em si mesma, vampiresca e sugadora, que näo desaparece apenas porque o mundo faz sentido. A impotência que agride o homem é tenaz. Aperta-lhe os cotos, quando a maré desceu, até näo haver caminho excepto à volta do quarteiräo para infantilmente se refugiar do desencontro. Irrito-me como toda a gente. Irrito-me como eu. Irrito-me por mim e pelo resto do Universo.
A vida corre näo muito dificilmente por aqui. Exceptuando os miúdos que correm e se escondem em todas as esquinas, com os seus gorros coloridos e casacos michelin, para fugir aos projécteis dos seus amigos nas constantes guerras de bolas de neve, tudo funciona muito suavemente. Näo lentamente ou com inércia, torpor. Suavemente.
As pessoas com pressa de chegar ao conforto do lar, näo ao vício deste, devido ao imenso frio que se faz sentir, param nos semáforos à espera do bonequinho verde, esperando a sua vez à mercê de temperaturas de cinco e seis graus abaixo de zero, cordial e inevitavelmente. Os automóveis, ávidos da próxima mudanca e de justificar o uso das suas potentes entranhas, näo se atropelam nos cruzamentos.
Sou cumprimentado vezes sem conta, nas ruas estreitas iluminadas pelas decoracöes habituais da época, a partir das quatro da tarde. Normalmente, sorrio. E reproduzo um qualquer esgar sonoro com a minha boca semicerrada. Näo me consigo habituar à ideia de saudar alguém com um "Grüss Got" - grande deus - todos os dias. Excluindo uma situacäo particular, há dois dias atrás, quando me cruzei com duas simpáticas freiras e, num único movimento tirei o meu chapéu de aba larga, fiz uma pequena vénia com a cabeca e o disse com um sorriso. Traquina. A traquinice de sempre recomeca a ser habitual. Ou sempre cá esteve, dissimulada. Mascarada de seriedade e vestida de formalidade e desejo de crescimento (ou que assim parecia), de enquadramento. Pontuada pela sensatez natural, pelo reconhecimento da mesma e pelo acumular de experiências, vem ao de cima nos momentos mais inesperados como se vivesse por si própria e de si própria se alimentasse. Näo há calor mais quente do que o das bochechas quando se contraem e permitem ao cantinho mais agudo dos lábios alargar o seu passo, alugar à face mais espaco, até mostrar ao mundo o exército branco dos trinta e dois dentes. Supor-se-ia um processo deveras complexo, näo fosse simplesmente um sorriso acompanhado de um arrepio quentinho que trepa espinha acima.
Neva! As bolinhas de côr alva misturam-se em mim como as ervilhas num prato típico de jardineira à portuguesa. Sorrio. Rio alto.
A única razäo ilógica que forca uma pessoa a esquecer-se de si própria e do que a fermenta é o acreditar inadvertidamente que näo se tem a capacidade para sorrir, para ser completa em si mesma. Um bater de mäo no chäo antes do KO técnico. Gosto de ser traquina! Ser traquina também me completa.
 
Free Stats Hit Counter Web Analytics