26/06/08

Velas e Ananases

Era uma vela encantada que sorria e dançava no topo da sua ribalta feita de bambú. Chamava-se Cana Empinada mas era mais conhecida por Canas pelos objectos desorganizados que se sentavam ao seu lado no balcão. O ar satisfeito com que girava e rodopiava sobre si mesma devia-se à sua influência latina ( toda a gente sabe que os latinos passam a vida a rodopiar sobre si mesmos) e à altivez que a sua estrutura de canas de bambú lhe conferia em relação aos outros. Canas fingia que era empurrada para cá e para lá por uma amiga que, de vez em quando, normalmente durante a noite, a visitava quando as portadas do T1 se destrancavam e os estores estavam distraídos a meio caminho. - É a corrente de ar! - parecia dizer entre dentes, desculpando-se. Mas os outros não iam nisso! Não senhora! O copo de água de 2 dias, a mini de cerveja meio cheia, ou meio vazia, dependia do seu humor, as bases para copos e tachos, as folhas soltas rasuradas, o isqueiro, as mortalhas, o cinzeiro, os filtros e o tabaco de enrolar não se deixavam enganar facilmente. Já a haviam topado há muito. Até os livros alugados da biblioteca municipal, cuja estadia por aquele balcão era relativamente curta, assim como umas férias de Março a pedirem para fugir à rotina, já haviam percebido o ardil da vela que dançava e nunca se apagava.
Apesar de toda esta azáfama nocturna, Canas sentia-se algo só. É certo que era graças a ela que todos os outros conseguiam ver-se e perceber que ainda ali estavam e não dentro de um armário escuro e com cheiro a bafio e a CD´s de há 4 anos. Ela sabia disso. Porém, nunca conversavam muito com ela. Na verdade, deixavam-se simplesmente estar para ali muito quietos a noite toda. Talvez por saberem que durante o dia iriam ter trabalho e aventuras excitantes novamente.
Por isso, quando chegava a noite, Canas gozava ao máximo e gabava-se de ser a única a ser importante.
Um dia, certa noite mais precisamente, Canas conheceu uma meia fatia de ananás. Sentado num prato cinzento pedra, o dito ananás começou a falar avidamente com ela. Canas achou aquilo muito estranho. - Tu falas? - perguntou.
- Claro! Tu também, suponho, ou estou a ouvir ecos?! - retorquiu o ananás.
- Pessoal, pessoal! Um ananás que fala! - gritou Canas ainda surpreendida.
A surpresa foi geral. Todos os objectos observaram o ananás, estupefactos e incrédulos. Nunca tal haviam imaginado. Os ananases que, por vezes, tinham visto nunca haviam antes falado. Vinham daquele lugar estranho com duas portas brancas e normalmente desapareciam logo mal chegavam ao balcão sentados naqueles pratos cinzento pedra. Isto era realmente estranho e digno de reflexão. Assim sendo, apesar dos olhares atónitos, ninguém esboçou sequer um som que fosse face ao inesperado ananás que falava.
Mas canas estava contente. Tinha, finalmente, descoberto alguém que conversava com ela e lhe respondia.
- Vens cá muito? Nunca te tinha visto. - perguntou Canas.
- Não. Não tinha nada para fazer no frigorífico e vim dar uma volta para aquecer um pouco...
O Meia-Fatia, era assim que se chamava, era mordaz e talvez excessivamente irónico quando se dava com outros objectos. No entanto, por trás daquela aparência agressiva (de ananás), escondia-se um ananás simpático que, no fundo, no fundo da sua fatia - perdão, meia fatia - só reagia assim por se sentir mal e triste a maior parte do tempo. É que ele tinha medo do escuro e no frigorífico onde ele vivia estava sempre escuro pra burro. Assim, e como era o único que dentro do frigorífico tinha medo do escuro, os outros habitantes da gronelândia das cozinhas gozavam com ele. Como imaginam, a vida de Meia-Fatia não era fácil. Para não falar do terrível sentimento que se instalava no ar de cada vez que se abria a porta do frigorífico (palavra chata e comprida. Doravante, passarei a referir-me ao.. ele como Frigo). "E agora, será que sou eu??" - pensava Meia-Fatia sempre que isso acontecia.
Canas, pela primeira vez, sentia-se contente. Já nem se queixava da sua amiga corrente de ar. E era ver como ela dançava. Pra cá e pra lá, pra cá e pra lá, pra cá e pra lá, pra c... Bom, acho que se percebe! Tinha arranjado um amigo que não se calava a noite toda, não olhava para ela com aqueles olhos críticos e de algum desprezo que havia enfrentado a vida toda naquele balcão, não a mandava apagar-se para poder dormir nem ser outra coisa qualquer que ela não soubesse ser. Ok, podia ser mais simpático mas, que diabo, era um ananás!
Os dois falaram a noite toda. Riram, falaram alto, contaram histórias de velas de outros tempos e ananases corajosos, gozaram com os outros objectos em conjunto... A noite mais longa das suas vidas! Nem valia a pena os outros objectos resmungarem e vociferarem acerca de horas mal dormidas e de luz a mais. Os livros já imaginavam o dia seguinte, com as páginas mal abertas de sono e as olheiras na lombada.
Canas e Meia-fatia tinham descoberto um momento só dos dois e não pretendiam abdicar disso custasse o que custasse, doesse a quem doesse.
As horas foram passando, passando e... passando. Quando as primeiras galinhas, galos, faisões, perús e não sei mais o quê, que anda para ali no quintal do meu vizinho, começaram a sua sinfonia matinal em jeito de orquestra afinada por um surdo-mudo, e com os primeiros raios de sol (Qual quê! O T1 dá para as traseiras) a espreitarem timidamente pelas frestas do estore mal fechado, a voz de Canas esmoreceu um pouco. Ela sabia o porquê mas não queria que Meia-Fatia se apercebesse. Havia ficado acesa tempo demais. O seu pai, agora no céu das velas, havia avisado Canas que nunca se deixasse ficar acesa durante tanto tempo. Mas, sem perceber exatamente a razão, Canas fê-lo e sabia que isto iria acontecer. Aos poucos começou a ficar pequenina, já não dançava com tanto fulgor e já olhava Meia-Fatia nos olhos em vez de apenas lhe ver a testa. Claro que Meia-Fatia se apercebeu que algo estava estranho.
- Que se passa? - perguntou-lhe. - Estás farta da minha conversa é?
- Não Meia-Fatia. Estou a morrer.
- Como?! Ainda agora estavas a dançar e falavas que te desunhavas.
- Eu sei. Mas agora estou a morrer. O meu tempo acabou. Não tarda terás outra vela para conversar à noite e esquecer-te-ás de mim.
- Mas... eu preciso que fiques aqui. Quero conversar contigo. Não quero ficar sem a tua luz Canas.
- Não posso. Mas não fiques triste. Foi a noite mais feliz da minha vida. Valeu a pena estar acesa toda a noite enquanto falava contigo. Pela primeira vez, senti que era importante no que fazia. Vais ver, amanhã já terás uma companhia nova aqui no balcão a dançar e a falar contigo.
Meia-Fatia calou-se e observou os últimos momentos da sua amiga. Regozijou-se pelo facto de ter sido alumiado por Canas uma noite inteira e acreditou que brevemente iria ter uma nova vela, viçosa e dançarina por companhia. Começou a sentir-se melhor. Não é que não estivesse ainda algo triste. Porém, como é sobejamente conhecido, os ananases não têm memória nenhuma. Ou antes, têm memória curta, de peixe azul! Aos poucos já tentava falar com os livros de biblioteca e com a garrafa meio cheia (ou...). O dia estava a despontar, não estava escuro, iria conhecer uma vela nova... Tudo estava bem! Sim, já estava despreocupado e contente. Canas havia sido importante para o que ele precisava. Apenas e só. Agora, a vida continuava.
À medida que o dia ficava mais claro e os animais do lado mais barulhentos, comecei a ter sono (finalmente - 7 da manhã!!) e fui-me deitar. Amanhã - daí a um bocado - era outro dia. Cheio de coisas para fazer, psicólogo para falar, velas novas para comprar e ananás para o pequeno-almoço...
 
Free Stats Hit Counter Web Analytics