16/01/09

Sou forte, aéreo
tenho a força de um jumento
cego, louco, burro de raiva
ou raiva de burro,
tenho em mim a palavra
as letras e o traço,
do ritmo insidioso,
o assédio dos finados
e a força velada do vento.
Queima em mim o fogo
labareda intencional, provocadora,
Deixai-o queimar!
Deixai-o pastar!...
não o quero nas ruas
todo de uma só vez,
Deixai-o pastar
para quando em consciência o puder largar.
E morrerei de riso,
de boa vontade o repiso,
na minha fogueira, grande,
quando os pés já doerem
e a voz se me queimar...
Bates-me à porta, Batota, e chamas-me à mesa de jogo quando a minha mão não é muito alta. Quando não encontro nos dedos da mão direita as cartas que me fazem falta.
Sossegas-me com um ás escondido na algibeira e, por vezes, o trunfo dos trunfos que, irrepreensível, agarra a vaza de forma mais que certeira. Sou eu que to permito, sou eu que por permitir prevarico. Deixo entrar a Batota, aceito, por momentos, as cartas que me são dadas esquecendo que a regra essencial para a aprendizagem e sobrevivência consiste na derrota de algumas vazas, no aceitar de lambadas e caneladas.
De todas as leituras, de todos os traços, de todas as paisagens pintadas com cores pesadas e difíceis de esquecer, sinto que existem muitas histórias, muitas vidas, muitas construções e desconstruções, todas diferentes entre si. Aprendo que a unicidade das situações, dessas histórias e dessas vidas é real, material. Não compreendo exactamente o que me transmitem, do que falam ou sequer do que se alimentam mas compreendo que estão lá, que o corpo ganha forma aos meus olhos quando o reconheço, quando o consigo finalmente ver, que o chão tem cheiro quando o piso deitado de costas, que o toque do ar frio não é subserviente e toca com força, que a forma, o cheiro, o toque sempre estiveram lá mesmo que só agora os comece a sentir com a certeza do reconhecimento, que existem.
Muitas vidas, muitas histórias, muitos momentos, num consolo inconsolável, num carrossel que não pára de girar e cuja música não se cala.
Curioso: O Nú assume-se como a definição primordial da minha fantasia realista. Dos traços sólidos e minimalistas, do uso dos dias sem desperdícios. O pensamento sente-se bem, confortável, quando se despe de excessos e irrelevâncias e procura os traços rabiscados, sobrepostos sem qualquer hesitação, a grafite na exposição do Nú...
É giro constatar que até no traço simples da grafite existe uma pluralidade de conteúdos e formas. Inconscientemente, talvez, essa pluralidade assume-se como propositada quando nos detemos em frente da tela pendurada naquela sala de paredes branco-claro. Na observação do aprumo final, completo, julgamos a imagem pela intencionalidade quer de contexto visual, logo na sua dimensão emocional, quer no que toca às opções de definição e composição do que se apreende da realidade, incluindo a escolha e o desprezo por determinadas partes do todo.
O toque do copo já meio cheio no meio, também, do fim da claridade e dos passeios à beira estrada. O frio cresce de minuto a minuto. O Sol bandido, incógnito por detrás dos prédios minúsculos de dois e três andares, dá por finda a jornada e os passeios das cores quentes, segredando já baixinho um "até amanhã". O cálice adquire uma côr vermelho-acastanhada, deixando o reflexo e os tons vivos à espera de outro fim de tarde. Lá fora, tudo anda, tudo mexe. A grupos de três e quatro, os transeuntes sorridentes e apressados inspiram os primeiros aromas frios da noite. A noite tem um cheiro característico aqui. Se não estão zero, os benditos graus disfarçam como ninguém. A passo acelerado, mochila às costas ou saco na mão, cachecol tentacular no sopé da cabeça, os pioneiros individuais marcham de olhos no chão, atentos ao seu próprio compasso, ritmo distraído, cabelo curto mastigando a testa e os olhos, de sobretudo escuro e ligeireza na sola das botas castanhas.
Por princípio, nego o carácter de surpresa aos encontros, aos olhares que poisam no outro lado da estrada, cuja impermanência dista apenas duas fileiras de veículos enervados, dois pares de olhos de todos os feitios e cores, faróis que se atropelam e sucedem, num ruído de luz quase irrelevante e, de repente, silencioso. O campo de visão roda tridimensionalmente como num projecto académico de arquitectura dos espaços, de arquitectura dos quarteirões do destino, de opção aleatória por um dos passeios que dão a mão à estrada de alcatrão. Sem o saber, coloquei as fichas no vermelho. O telefone chamou-me. Atendi. Confidenciei à voz do outro lado que, na roleta dos acasos, no póker das coincidências (será que as há?), saiu preto. Na minha casa vermelha, deste lado da rua, tombou o preto de cachecol azul, em passo apressado do outro lado da rua. Não sei se perdi se ganhei... Uma vez que nem havia jogado.
 
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