28/11/08

Dia novo. Continuamos à espera da neve que já se fez convidada há pelo menos duas semanas e meia. Sinto-a chegar de mansinho pelo tremer das minhas mäos sem luvas. Um chega que está quase. Sempre quase... Mas ainda näo já!
Hoje conheci a Maria. A verdadeira Maria dos montes austríacos. Sorriso fresco e uma forca de fazer inveja aos da cidade. Vive numa quinta rodeada por montanhas com gorros brancos de neve e florestas de pinheiros de uma imensidäo demasiado grande para o olho humano. A verdadeira Maria, já velhota, tem setenta anos de idade.
Pouco depois de me receber como se estivesse a receber alguém muito próximo, com uma proximidade e um carinho, para mim, quase incompreensíveis, colocou na mesa de madeira antiga, no centro da sala de soalho de madeira, no centro da mesa, dois chás quentes. Receita caseira. Ao primeiro golo revirei os olhos para dentro, torci o nariz e fiz uma daquelas caretas de miúdo que näo sabe se gosta da sopa da avó. Ela sorriu imediatamente. É que a Maria dos montes, de setenta anos de idade, bebe chá quentinho com conhaque para se aquecer do ar frio e húmido que preenche o vale. Ao segundo golo, fiz ar de forte e sorri em sinal de aprovacäo. Maria ficou feliz.
A conversa decorreu de forma complicada. Maria näo fala Inglês e eu pouco Alemäo entendo. Stefan ia dando uma ajuda aqui e ali para que nos pudéssemos compreender. Acho mesmo que ela compreendia mais os gestos que fazia com as mäos do que as palavras que se escapavam da minha boca. As horas foram passando e lentamente fui apreendendo os cantos à casa à medida que ia ouvindo as histórias de Maria, ora contadas por ela e traduzidas por Stefan, ora contadas pelo próprio Stefan. Volta e meia, éramos interrompidos pelo toque do telefone. Nessas alturas, Maria levantava-se do seu cadeiräo e percorria a sala em direccäo ao objecto ruidoso apesar dos muitos pedidos de Stefan para näo o fazer e das pernas lhe tremerem a cada passo. Apoiada nas suas muletas de pau, demorava cerca de dois minutos a percorrer, incansável, os dez metros que nos separavam do telefone. Quer fosse para ir ao telefone, à cozinha buscar mais um pouco de chá ou até para ir ao fogäo colocar mais lenha para manter o calor caseiro, Maria levantava-se sempre e, com um olhar assertivo, calava Stefan e até a mim. Uns anos antes, acontecera um acidente com o fogäo de lenha. Provavelmente devido à sua antiguidade - data incrita no próprio de 1860 - a pequena porta de ferro que encerra o fogäo rebentou com o calor e os pedacos de ferro quente embateram nas pernas de Maria. Agora, as muletas de pau faziam parte de si, da sua já longa vida. Fazia, porém, tudo o que era necessário fazer para que a quinta se mantivesse. É uma imagem despejada nos meus olhos, ainda a ferver.
Foi a custo que a convenci a deixar-me ajudá-la na tarefa final do dia, pouco antes de anoitecer. Havia que agrupar as sete galinhas e os dois galos e encaminhá-los para o respectivo galinheiro. Isto antes da noite cair por causa das raposas ameacadoras. Näo foi nada fácil...! Entravam umas, saíam outras... Dir-se-ia que conheciam a minha falta de experiência de campo e, propositada e descaradamente, faziam pouco do meu ar autoritário. Foi ridiculamente hilariante - para quem via de fora. Por fim, depois de muito negociar com elas, a custo de migalhas de päo e palavras já näo muito amigáveis, lá consegui.
Voltei para dentro. Maria tinha, em cima da mesa de madeira, à minha espera, seis ovos frescos das mesmas galinhas. Seis dos quinze que possuía. Seis dos quinze para mim, como forma de pagamento. E näo me deixou recusar. Só aí compreendi a importância do que tinha feito. Deu-mos com um enorme sorriso de ternura. Deu-mos com o sorriso de quem dá o que tem. E, provavelmente, o que näo tem também. A próxima refeicäo estava garantida!
Se me alongo demasiado a descrever esta tarde, a razäo é simples. Apaixonei-me por esta personagem e pela sua forca, o seu brilho. O marido era alcoólico por profissäo e as cenas de pancadaria conjugal foram comuns durante a uniäo. Já morreu. Juntos, deram a vida a quatro filhos. Um matou-se muito novo, o segundo pereceu num acidente de automóvel, o terceiro desapareceu há muito de sua casa e o quarto vive com Maria. Näo o cheguei a conhecer.
E, no entanto, o sorriso terno nunca se separa da face de Maria. Nunca.
Quando me vim embora, deixei um pouco de mim naquele lugar apaixonante e trouxe um pouco comigo.

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