24/11/08

Trinta criancas todas em fila, com barretes coloridos e bochechas encarnadas por causa do frio. Todas as manhäs assisto à parada em frente ao meu café - o "Pardi".
Dir-se-ia que marcham! A habitual preocupacäo das preceptoras é substituída por um olhar fixo no horizonte, sempre em frente, convictas que estäo da ordem natural da fila dos seus protegidos. Até onde os meus olhos alcancam, mesmo antes de desaparecerem atrás do edifício amarelo, confirmo que a fila se mantém, sem desvios nem transviados, nada. Lembro-me de qundo era miúdo, meio metro de tamanho, e dávamos passeios em tudo semelhantes a este. Em tudo... Excepto o prazer que sentia, eu como os outros, em quebrar a linha direita, a fila, em correr atrás de um pombo ou trepar a uma árvore ou, simplesmente, conversar com um desconhecido no meio da rua (sim, eu sei o que as nossas mäes nos dizem acerca disto), apenas porque sim.
O desfile infantil acabou e o meu pensamento volta-se para o que me motivou a vir até aqui - café. Espreito para dentro do "Pardi" e vejo de relance o homem da bata branca que todos os dias me inicia na língua alemä. Trocamos olhares de longe, reconhecemo-nos e avanco, de seguida, para a minha mesa (já tenho uma aqui; todos temos que criar algumas raízes), certo de que em breves instantes a bata branca cruzará as portas de saída do café para me cumprimentar e saber o que desejo. Nada mais errado! Sorrio perante a surpresa. A cruzar as portas näo vejo um empregado (näo gosto desta palavra mas na falta de melhor) com um ar inquisidor mas sim um sorridente "conhecido" que já traz na sua mäo esquerda uma bandeja com o meu menu matinal - café e copo de água. Confesso que estranhei, näo obstante a minha satisfacäo, o acto impulsivo simples, täo pouco simples nestas paragens. Aqui onde falhar significa o fim de toda uma vida de preparacäo e preocupacäo. A explicacäo virá depois e, essa sim, é simples.
A bandeja é suavemente poisada na minha mesa. E logo a seguir, enquanto se contorce todo para um lado e para o outro, joelhos dobrados e dorso levemente reclinado, solta um aiiie profundo e explica-me que, em tempos, partiu os dois joelhos a praticar ski. Parecia que dancava um Hula-Hula havaiano com voz cigana a acompanhar ali mesmo no meio da rua. Imagine-se a imagem pitoresca (por ser) na esplanada de um café no centro de Munique. Como numa peca de teatro, a história complica-se quando uma senhora dos seus sessenta e poucos anos subitamente se depara com aquela demonstracäo täo incomum de espontaneidade e, colada aos seus pés imóveis, arregala os olhos, estupefacta. Apeteceu-me rir! E ri! Como que lancei para o palco a lead para a cena seguinte, uma vez que, qual ponto no teatro, abri a porta para algo mais... Näo tardou estávamos todos a rir. No meio daquela rua gelada, em plena Straße, acontecia o mundo, a vida em comum... o "toque". A lógica sem qualquer lógica. Éramos três pessoas que näo se conheciam, de idades e raízes diferentes a rir, a comunicar enfim, espontâneamente, sem vaidades nem rigor. O empregado, aproveitando o balanco, instruiu a senhora para que olhasse para a frente quando anda, näo fosse cair...!
Guardei para o final a explicacäo que prometi umas linhas antes relativamente às causas do comportamento do empregado do "Pardi". Porque também, só no final de toda aquela cena banal, no entanto deliciosa, ele ma deu.
Soltou, após tudo aquilo, um orgulhoso - Sou grego!!
Sorriu e foi para dentro. Näo sem antes me perguntar se desejava um expresso duplo com desconto de grego. Anuí e sorri novamente! Vim para Munique estabelecer comunicacäo com um grego...
Voltei ao Kundera. Abri o livro e deixei-me levar. Ainda näo percebi se viajo mais nas suas páginas repletas de letras ou na minha deambulacäo pela Europa. Os músculos da face retraem-se-me como um convite. E deixo o olhar que anda tomar conta...

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